20080708

Retiniano

      O seu rosto tinha traços fortes, as maçãs do rosto bem marcadas, o nariz fino, os lábios cheios e os olhos castanhos, expressivos e intensos. Os cabelos, também castanhos, eram comuns e simplesmente completavam a composição, como se soubessem o seu lugar perto de tantas outras qualidades de uma mulher tão bonita e incomum, com o tipo de beleza que não se espera encontrar sentada em um ônibus a caminho de qualquer lugar.
      Ela estava sentada ali e quando o ônibus parou no semáforo, seu rosto se virou para a janela, com os olhos percorrendo o local onde estava, se localizando com curiosidade e insegurança. Ela sabia onde estava, mas não deixava de procurar, daí talvez essa sensação tão leve de insegurança. O que poderia encontrar, ou quem? Alguma coisa ela procurou por alguns instantes sem ir muito além, até que se viu na mesma rua de todo dia e voltou o rosto para frente, numa expressão impassível.
      Por algum tempo, admirei aquela mulher silenciosa e absorta em pensamentos indecifráveis. De repente, com uma sutileza surpreendente, seus lábios se curvaram, levemente e seus olhos sorriram, ainda distantes, como quem encontra prazer e conforto em algum lugar de seus pensamentos para, no instante seguinte, a expressão séria e impessoal voltar ao seu lugar. Mas, era tarde demais para se recompor pois eu vi aquela faísca de satisfação, tão rápida quanto intensa. Sei que vi porque aquele sorriso rápido e sutil surgiu de forma tão repentina e sincera que fez uma marca em minha visão. Como quando se olha por muito tempo para uma lâmpada ou para o sol e depois se continua a ver aquela fonte de luz em todos os lugares para onde os olhos se colocam. Uma persistência retiniana. Foi isso que aconteceu, uma espécie de persistência retiniana. O sorriso daquela mulher atingiu meus olhos de tal forma que desde então, continuo a vê-lo com o mesmo prazer e surpresa, no mesmo lugar, não importa para onde eu olhe.
      O semáforo ficou verde e o ônibus se foi.

      Ela não me viu.