20040627

Clara oo2

   Clara já estava para sair de casa quando o telefone tocou. Após 2 chamadas e meia, ela atendeu.
   -Alô?
   -Alô, Clara! Como você vai?
   -Tô levando. Quem é?
   -Porra, sou eu, o Paulo!
   -Ah, oi Paulo! E aí, meu?
   -Tem programa pra hoje?
   -O que você acha?
   -Acho que agora você vai ter. Vamos ao cinema?
   -Pois...?
   -Pois tá passando Festim Diabólico no cinema novo. Aquele lá, o "cult", hahah, sabe?
   -Sei.
   -E aí, vamos?
   -Não tô a fim.
   -Vamos, vai! Cê precisa sair pra se divertir! Vamos?
   -Tá, tá legal.
   -Beleza! A gente se vê então na Avenida dos Mafagafos, em frente ao cinema, lá pelas duas!
   -Tá legal.
   -Clara..
   -quê?
   -Toma cuidado.
   -..tá.
   Desligando o telefone, ela dirigiu-se para o banheiro, onde tomou um banho demorado, refletindo sobre o sonho da noite anterior. Já era a terceira noite consecutiva que esse sonho a afligia. E apesar dos esforços, eles não pareciam querer parar. Cada noite parecia mais real. Cada vez, tudo soava mais próximo. Ela pouco se importou. Todo mundo morre um dia, mesmo.
   Depois do banho, Clara vestiu um jeans desbotado, uma camiseta preta e seu coturno. Amarrou os cabelos curtos num pequeno rabo-de-cavalo e passou as mãos por sobre o rosto. Sentiu algo diferente e correu para olhar-se no espelho. Seu rosto estava como sempre, magro e expressivo. Seu olhar expressava um certo desapontamento.
   -Essa merda já tá me deixando paranóica.
   Instantes depois, já estava caminhando pela rua. Faltava ainda uma hora, mas ela queria chegar cedo. Um pouquinho ao menos.
   Aquele dia estava nublado, mas bastante abafado. Ia chover a qualquer momento, Clara sentia em seus ossos. Mas não levou sequer um guarda-chuva- Eu não sou a bruxa do mágico de Oz pra derreter com água, então, que se foda- e levava apenas uma moedas no bolso e uns 20$ na carteira. O cinema era barato, isso era a menor das preocupações.
   Clara tinha um passo apressado, naturalmente. Mesmo que ela não estivesse com pressa, era como se ela estivesse caminhando pra ir para o banco faltando cinco minutos para fechar. Pressa.
   Ela associava isso à sua ansiedade crônica. Ela já teve as unhas todas roídas, mas hoje contenta-se em caminhar. Desde cedo sua mãe já dizia Clara, você é muito ansiosa, menina! mas Clara achava isso bom. E justamente por isso ela odeia gente molenga. Falta de propósito na vida, porra.
   Enfim, chegou em frente ao cinema. Do outro lado da rua um prédio estava sendo construído. Clara sentou-se no banco e ficou admirando aquele futuro prêmio de concreto, que orgulhava tantas pessoas. Os molengas, no geral. Gente sem propósito na vida. Estúpidos.
   Seus pensamentos são interrompidos por propostas, vinda daquela construção. Os pedreiros estavam em horário de almoço.
   -E aí, boneca!
   Clara ignorou.
   -Ih, a boneca é metida.. eu sei do que uma boneca metida gosta..
   Clara virou e olhou pro outro lado.
   -Ah, bonequnha, cê deve ter uma bela rosca. Dá sua rosca pra mim!
   Clara emputeceu-se. Ela gritou.
   -E eu lá achei minha rosca no lixo pra dar pra vagabundo? Vai tomar no seu cu!
   Os pedreiros riam. Menos o vagabundo, então constrangido, de sorriso amarelo no rosto.
   E um ônibus passou a toda velocidade por detrás de Clara, na calçada. Desgovernado, chocou-se contra um prédio.
   O estrondo metálico encheu o quarteirão.

20040625

Clara oo1

   A televisão passava imagens chatas. Atentados aqui, assaltos acolá, um novo sabão em pó.
   Afundada em seu sofá, Clara rodava os canais, entediada.
   Ultimamente, poucas coisas deixavam-na animada, realmente. Tudo era chato. E cinza. O mundo ao seu redor era tão preto-e-branco como se a claridade e a escuridão brigassem entre si, o tempo todo. Todo o tempo. Chato.
   Ouve-se nitidamente um som levemente agudo, vindo de lugar algum mas onipresente. Aos poucos, Clara vai ficando irriquieta. Desligou a tv. Olhou ao redor, o seu mundinho em preto-e-branco. Era engraçado como tudo se remontava de uma maneira diferente a cada vez que ela olhava. Ela se levantou e em meio à penumbra, pegou um copo e encheu de um café velho e frio. Tomou num gole só e cuspiu tudo na parede. Quanto tempo havia se passado desde que ela sentou-se naquela poltrona?
   Ela tomou o rumo da rua, agora em um passo afobado. Ela passou tanto tempo em frente à TV que ela esqueceu-se de viver. Só que lá fora encontrou um mundo igualmente cinza. Frio. Caótico. Voltou correndo para a segurança de seu lar.
   Clara queria se distrair. Clara pegou um livro para ler. Mas o livro estava com as páginas em branco. E um segundo livro também estava assim. E um terceiro, quarto. Todos. Em branco. Como se nada jamais tivesse sido escrito.
   Sua mente perdia-se em questionamentos. Cada nova questão parecia ser maior que a anterior. De repente, Clara correu até o espelho. Admirou a sua imagem, bastante deturpada. Tocou o rosto, procurando alguma sensação. Ela não sentia nada. De repente, viu seus olhos lentamente escurecerem. E o som contínuo, agudo, tornar-se mais e mais distante a cada segundo. E sua garganta fechar-se em um abraço vagueiro e esparso, tomando-lhe o ar e sufocando-a lentamente. Ela nada mais via. Nada mais ouvia. Nada mais sentia. Não.
   Clara acordou, em um impulso forte e desesperado. Ofegante, olhou ao redor, seu mundinho colorido e medíocre. Ela sorriu. Afundou as mãos no rosto, rindo sozinha. Em um momento de reflexão e auto-crítica matinal, Clara disse:
   -Sua filha da puta.

20040611

Sem título (Historieta I)

   E lá estava eu, novamente na fila. Eu queria comer sopa. Mas o CD não deixou. Ele disse que eu deveria tomar o caminho das pedras brilhantes. Perto do monte do desodorante. E lá fui eu. Relógio abaixo. Perto da tenda dos índios astecas socioeconômicos anarquistas, eu vi uma placa: "É proibido comer gengibre. E fumar também, lógico".
   Admito que senti um pouco de raiva e por isso ateei fogo naquelas barracas de lençol amarelo. Às putas que os pariram se eu não podia comer gengibre. E segui viagem.
   Continuei caminhando e encontrei uma bolinha de pinball. Ela foi deslizando até cair num banheiro. Puxa, que tristeza, eu adoro pinball. Uma vez eu gastei todo meu dinheiro no pinball. E quase freqüentei uma casa de reintegração à sociedade. O pinball era minha única preocupação, não tinha mais o que fazer, naquela época. Eu vendi até mesmo meu chapéu de cowboy para jogar. Dois dinheiros, eu acho. Aquele chapéu tinha história. Quando eu cruzei o Mississipi de patinete ele me acompanhou. Isso foi em.
   Uma bicicleta me interrompeu:
   -Bom dia, gostaria de comprar sabão em pó?
   -Não. Obrigado.
   -Mas veja só, ele lava mais verde. Ou azul.
   -Nah.
   -Tem esse que também lava mais vermelho, mas psiu, cá entre nós - fez um movimento pra mim chegar mais perto -, esse aqui é proibido pela guarda civil mundial municipal esquizofrênica do Pólo Norte. Mas eu tenho aqui, pra você. Quer?
   -Não. Obrigado. Boa tarde.
   A bicicleta saiu resmungando alguma coisa. Idiota. Eu tinha que seguir o meu caminho. E eu segui. Ou quase. Quando eu estava perto do morro dos ventos uivantes, eu me distraí com um gigante perneta e me desviei um pouco. E quando eu cheguei ao fim do caminho, pelo menos era o que me dizia a placa, eu estava na casa de palha maciça, a original desde 1927. Eu sabia que não era lá, mas já que eu já estava lá mesmo, eu entrei.
   O lugar era sujo e cheio de teias de aranha. Em cima da mesa tinha uma caixa de sabão em pó, "Lava mais Roxo" e uma vassoura empenada. Um bilhete dizia:
   A Casa de Palha Maciça, sem limpeza desde 1928.
   Oras, então é por isso, esse lugar já está há... há... porra, que ano que é esse que estamos? Deve fazer mais de um ano, eu tenho certeza. Outro dia uma aeronave caiu no meu quintal. Isso foi divertido; eu estava lá arando o quintal, e minha vizinha me chamou:
   -Jack Jacksonfive! Jack Jacksonfive! Olha só o que eu recebi! Recebi uma carta! Uma carta eu recebi! Oh que alegria! Alegria, alegria, alegria!
   -Puxa!
   Eu fui em direção ao portão e assim que eu cheguei, CRAC! o som vinha da minha plantação de alface crocante. Quando eu olho para trás, lá está uma nave. Saem dois chimpanzés e uma orangotanga. Eles saem, se deitam no chão, acendem um cigarro e ficam fumando. Deve ter rolado uma putaria naquela nave. Os chimpanzés se esbaldaram, tenho certeza.
   Na Casa de Palha Maciça, a original desde 1927 eu não encontrei nada de interessante e refiz meu caminho de volta ao morro dos ventos uivantes para ver se chegava enfim ao meu destino. Dou dois passos e uma pedra diz que está com as costas coçando. Puxa, como eu detesto essas pedras folgadas. Não fazem o mínimo esforço para coçar as próprias costas. É incrível como elas são preguiçosas. Dei uma bicuda e mandei-a à merda. Não dou a mão pra vagabundo.
   Então, no morro dos ventos uivantes, eu peguei o caminho certo. Coloquei meu chapéu de piloto e fui caminho adentro. Era um caminho complicado, tinham copos e folhas e cipós. Umas árvores também. Aquelas árvores de pneus estavam com uns belos pneus. Madurinhos de tudo. Mas me ative à minha jornada. Daí, eu me perguntei o por quê de toda aquela chateação. Mas não obtive resposta. Sei lá por que. Mas eu fui seguindo. Junto ao mar de vaga-lumes. E escalei as gavetas para chegar enfim a uma pedra grande e estúpida. Pelo menos era o que dizia a placa. Pedra Grande e Estúpida. Na verdade não a achei assim tão estúpida, nunca parei para medir o coeficiente de inteligência de uma pedra, mas que ela era grande, ah, ela era. Ao longe eu avistei um brilho. Devia ser o caminho das pedras brilhantes. E eu saltei do alto da pedra grande e estúpida e corri teias adentro. Numa floresta lá. Teias e mais teias. Uma aranha gigante canibal e maneta me seguiu. Ela gritava:
   -Meus filhotes! Você roubou meus filhotes!
   Eu parei e olhei pra ela.
   -Eu não roubei nada, señorita!
   -Roubou sim! Eles não estão mais aqui!
   -Hã.. ok.
   E dei no pé. A aranha gigante canibal e maneta não era apenas gigante e canibal e maneta. Era também esquecida! Aposto que também era analfabeta. Ou pelo menos disléxica.
   Eu enfim cheguei ao monte do desodorante. Tinha um cheiro bom lá. Mas a placa era taxativa:
   
MORRO DO DESODORANTE.
   Mantenha os braços erguidos.

   Daí eu ergui os braços para não desrespeitar a lei. Mas pomba, e se eu fosse maneta? Aposto que a aranha gigante canibal maneta esquecida e possivelmente diléxica ou analfabeta ficava naquela floresta de merda fazendo teias porque ela não podia chegar ao delicioso monte do desodorante. Oh que cheiro. Oh que vida.
   A parte ruim do morro do desodorante era quando ele vencia. Puxa, não tem nada pior que monte do desodorante vencido. Não dá nem pra chegar perto. Mas aquele dia o monte tava bom. A parte muito boa do monte é que depois que você vai lá você passa 1 mês sem suar. Mas nem uma gotinhazinha pequeninha de nada. Ele te deixa sequinho e cheiroso. Acho que era por isso que devíamos ficar com os braços levantados. Pro sovaco, o antro do suor, ter uma proteção bem super. Deve ser por isso.
   Chegando ao caminho das pedras brilhantes, eu peguei duas pedrinhas e enfiei no bolso. Uma terceira eu joguei ao longe, em direção ao lago de suco de nectarina. Que estranho, não me lembrava desse lago. E seguindo o caminho, muito longo por sinal, eu não via outra coisa além de pedras brilhantes e suco de nectarina. Devo ter andado uns 932 dias. Por aí. Quando cheguei ao final do caminho das pedras brilhantes, abracei a placa que assim o dizia e fechei os olhos, relembrando qualquer um dos fatos dessa jornada. Me lembrei do cavalinho de pau que eu penhorei pra pagar um cara pra guardar meu lugar na fila. Daí, eu lembrei da fila. A fila já deve ter andado!! Abri os olhos e começou a chover. Olhei para o lado e lá estava o meu CD com um prato de sopa nas mãos.
   -Feliz Aniversário, Jack Jacksonfive!
   Sopa. Que bizarro. Era justamente o que eu queria!
   Atônito, eu sorri. O que mais eu podia ter feito?