20040829

A menina do deserto

   Dolores acorda e ainda de olhos fechados, sente o calor irradiando do chão. O solo é fofo, de uma areia fina e o calor é intenso. Ela abre os olhos e olha ao redor. Areia e mais areia. O sol escaldante e areia. Um vento fraco. Areia, areia, areia.
   Ela não se lembra como foi parar ali e nem se lembra de muita coisa. Em sua busca pela memória, só encontra seu nome e alguns sentimentos confusos. Dolores se sente desamparada, vê que ali ela só poderia vagar. No alto de seus treze anos, ela sente-se como uma menina no deserto.
   A intensidade do calor parece aumentar e ela caminha, sem direção certa. No horizonte, dunas de areia parecem amontoar-se desesperadamente; ela não tem sinal de civilização e aparentemente, não terá pelas próximas horas. Ela vê apenas imagens ao longe, imagens desconexas. Miragens, ela pensa. Dolores também ouve vozes, que ecoam pelo deserto. vozes familiares e agradáveis, porém desordenadas e muitas vezes amarguradas.
   -Você tomou muito sol na cabeça, sua estranha, ela repetia para si mesma.
   Ao fim da caminhada, ela cai exausta e sem energia para continuar. Está anoitecendo e, bruscamente, a temperatura cai e Dolores apenas está de encontro àquele chão gelado, tremendo e batendo os dentes, sentindo seu corpo adormecer. As vozes, gradativamente tornam-se mais claras.
   "Você vai ficar bem. Vai dar tudo certo."
   "Logo, logo você vai sair daqui."
   Tudo torna-se escuro de uma vez. Ela escuta uma voz clara, melodiosa e arrogante. O volume da voz é alto e direto. É a voz de sua mãe.
   "Ela está acordando..!"
   Dolores abre os olhos. Sua mãe, o médico, seu pai, a enfermeira ranzinza sem razão e uma segunda enfermeira mais próxima ao seu soro, ao lado da cama, com uma seringa em mãos. Todos a olham com expectativa, ao redor da sua cama. Dolores não entende bem o que se passa. Ela vê que está atada à cama, paredes frias e escuras, lençóis brancos, um chão cinzento. Seus olhos fixam-se sobre uma fotografia na cabeceira. Uma garota bonita, sorridente, feliz. Seu coração começa a palpitar. Mas sente um alívio. Ela não se lembrava de como a felicidade era algo tão simples. Contudo, quem é essa garota? não é sua filha, afinal ela não se lembra de nada parecido. Seria algum parente? uma amiga, uma vizinha? Ou talvez seria... sim, era ela mesma, talvez aos treze anos, no máximo quatorze. Ela era feliz, quem sabe ainda fosse. Leva as mãos ao rosto, e vê que suas mãos estão profundamente envelhecidas, suas mãos estão fracas, magras, secas. Seu rosto é flácido e com profundas olheiras. Ela olha para a foto novamente na cabeceira. quantos anos ela passou ali naquela cama? Vinte, trinta, provavelmente mais. Quem sabe cinqüenta anos ali, presa, inútil! Mas, por quê? O que ela tinha feito de tão ruim que.
   Uma voz interrompe seus pensamentos. Era o médico.
   -Como você está, Dolores?
   Ela sente-se agoniada. Desesperada, revoltada, inútil; ela começa a chorar e grita. Grita por socorro, grita pedindo por ajuda. Grita.
   -Enfermeira, dê uma dose generosa de calmante para nossa garota, ela ainda precisa descansar.
   A mãe, com lágrimas nos olhos e uma feição cansada, antiga, abraça o pai. Eles choram juntos. Dolores olha para a direita e vê a enfermeira número dois aplicar a injeção em seu soro. Instantaneamente, sente seu braço queimar, sua temperatura subir; seu estômago se revira, seus olhos escurecem novamente e o chão parece sumir debaixo de si. A dor, o desespero. Então, o calor. E o alívio.
   Dolores acorda e ainda de olhos fechados, sente o calor irradiando do chão. O solo é fofo, de uma areia fina e o calor é intenso. Ela abre os olhos e olha ao redor.