20080528

As boas novas

      Levanta o cigarro até a altura da testa. Ensaia um movimento com a mão. Os olhos permanecem vagando na parede, em um vazio que o próprio Carlos definiria como assustador, caso pudesse se olhar. Respira como quem vai começar uma nova frase por duas vezes, chegando a contrair os lábios na segunda vez, mas desistindo em seguida. Umberto permanece sentado e calmo. Não fuma e não bebe. Desenha com o dedo ao redor da xícara de café. Carlos toma ar mais uma vez e volta o olhar, mais vívido agora, para Umberto.
      "Eu devo ser louco" disse ele. "Eu só posso ser louco. Não há nada a se dizer. O tipo de coisa que geralmente provoca os mais profundos desejos e pensamentos nas pessoas me parece ridiculamente triste agora. Não consigo ver isso de outra maneira. E a pior parte é que nem eu sei bem dizer sobre isso. Sei que quando soube de tal fato, fiquei tão confuso que chorei um pouco. Não aconteceu nada de dramático ou a cena que você deve estar imaginando, Umberto. Só me senti profundamente emocionado entre a idéia de novas possibilidades e a possibilidade de deixar algumas idéias. Quando você se depara com essa possibilidade e tão somente com a possibilidade, e parece uma agressão, uma violação do seu tempo. Uma violação dos seus ideais. É triste, triste, triste. E feliz. É tão contraditório e violento. É uma canção fora do tempo. Um momento sem ritmo, uma suspensão e um desconforto. O tempo passa engraçado, a possibilidade é mais um elemento de adversidade quando deveria ser justamente o oposto".
      Carlos pára por um instante, refletindo no que disse. Umberto permanece ali, imóvel.
      "Se é só uma possibilidade, você não deveria se preocupar tanto com isso, cara. Isso é bom, se você pensar bem".
      "Isso é bom? Não sei se isso é bom, esse é o problema. Em outros momentos, provavelmente, seria só mais uma decisão. Pesaria os prós e os contras. E me colocaria do lado do vencedor. Agora, não há parâmetro, peso equivalente. O material usa um sistema diferente do imaterial e não estou certo de qualquer matemática para fazer uma conversão que seja justa". Pára um instante. Carlos traga o cigarro mais uma vez e, em seguida, amassa-o contra um cinzeiro que estava no centro da mesa. Cobre o rosto com as mãos e suspira, com tom reflexivo, pressionando seus olhos nariz bochechas, como se pudesse deformá-los tal qual massa de modelar.
      "E o que se pode fazer?" pergunta Umberto, interrompendo a obsessão não de todo gratuita do amigo.
      Carlos solta as mãos do rosto e olha para Umberto, que permanece encarando-o com uma seriedade tamanha que ao contrário de parecer rancorosa ou indiferente, dada a aparente rispidez da interrupção, só denota a honestidade e a verdade tão simples de sua pergunta. Carlos desvia o olhar e alcança o maço de cigarros. Com um movimento, expõe três cigarros, dos quais um se desprende e cai sobre seu colo. Leva o cigarro aos lábios e busca a caixa de fósforos nos bolsos de seu paletó com os olhos baixos, ainda pensando. Sem levantar os olhos e segurando o cigarro nos lábios, conclui.
      "Não sei o que fazer".

20080524

Godfathering

Agora à tarde vou ali fazer um Curso para ser padrinho de batismo. O batizado é na semana que vem e, ainda que eu considere profundamente lisonjeiro ser chamado para ser padrinho de alguém, acho um absurdo porque tecnicamente um padrinho é um substituto para os pais, no caso da ausência deles. E de acordo com a Wikipédia, "tem como obrigação auxiliar os pais da criança, na educação religiosa da mesma, no crisma".

Pretendo auxiliar a garota sob os meus preceitos que não necessariamente são cristãos. São fragmentos de tantas crenças, opiniões e subjetividades em geral que questiono uma aplicação para outro alguém a não ser eu mesmo. São válidas apenas para mim e só as responsabilizo em mim porque elas são igualmente mutáveis e eu sei a origem da mudança de um aspecto ou da sedimentação de outro. Assim como saberei da mudança dessa sedimentação, quando achar que assim deverá acontecer e da flutuação de tantas outras possibilidades e fatos que, certos ou não, manterei os pés fora do chão para poder me decidir. No fundo, não é fora do chão. É no chão formado por essa sedimentação, absolutamente temporária. Não é real ou concreto. Parecerá inconstante e desconfortável e muitas vezes, realmente é e será. E assim sendo, eu mudarei, todas as vezes, fixo apenas nas minhas convicções absolutamente pessoais e egoístas, que paradoxalmente atribui um valor incalculável às outras pessoas, sob as menores distinções que eu consiga atribuir.

Talvez mais do que um aspecto de educação religiosa (que sendo tão profundamente pessoal e honestamente, prefiro não induzir a absolutamente nada, oferecerei o que considero importante, apenas se achar necessário), acredito mais uma espécie de educação moral, por pior que soe a palavra moral. Atualmente, afirmo que os meus aspectos morais são fundamentados num processo de consciência e tão somente isso. A consciência de si. A consciência de seus atos. Um questionamento dos atos. Um questionamento de si.

Essencialmente, é isso. É muito mais, muito maior. Mas a essência, está aí. E é justamente isso que tenho para oferecer, agora. Ou tentarei fazê-lo, não sei. A garota tem apenas três meses, parece-me absurdo me preocupar com algo assim quando ela é tão nova, mais absurdo até do que ser chamado para ser padrinho de batismo. Mas aceitei a função, apesar do absurdo. Então, apesar dos absurdos, vou. Ali.

20080517

(a)cúmulo


Excesso de SMS, upload feito originalmente por Ye Captain.

Não é um TOC. É outra coisa. Simplesmente acumulo. E me desprendo da mesma maneira. Não sei, olho, sinto, penso, vivo. E de repente, tudo está lá, inclusive eu. Acumulo sem querer, as coisas se sobrepoem, me tomam, ocupam meu espaço imaginário. Os outros, eu. O mundo. Acúmulo.
E digo que não é TOC. É outra coisa. Porque quando percebo o acúmulo, o desprendimento é rápido. Porém, só o percebo quando o peso das coisas é maior que o meu e não consigo mais transitar em mim. Surgem bloqueios, irritação e cansaço. Não tenho o que fazer.

Formatei meu computador nessa semana. Fiz um extensivo backup em diversos DVDs. Só de música, foram 7 discos repletos. Trabalhos, projetos, textos e fotografias, em tantos outros DVDs. Em 1,48 GB eu tinha todos os meus e-mails, em um arquivo especial, já que eu faço o download dos e-mails através do Thunderbird. Gravei o arquivo especial em um outro DVD. Após formatar a máquina, reinstalar os programas e testar as configurações, tentei restaurar os e-mails. Deu erro. Perdi meus e-mails.
Instantaneamente, senti frustração. Depois, uma espécie de alívio que se transformou em completa indiferença.
([a]cúmulo)
Eu não sou meus e-mails. Apesar de que eu os tinha como "memória", já que a minha memória natural é pouco eficiente, eles não são nada. Foram. Incríveis. Agora, em especial, não são.
Hoje pela manhã, notei que meu celular alcançou a incrível marca de 600 mensagens recebidas e quase 500 enviadas. Não foi o meu celular, não o culpo. A culpa é minha. É desse acúmulo. Talvez, um medo de perder o que não existe. Esse medo de perder a existência, memórias e momentos. De que me adianta ter 600 mensagens no celular quando os melhores momentos da minha vida são maiores que um SMS? São gratas recordações. Um nojento saudosismo. Um escrotismo, uma falta de bom senso. O cúmulo do acúmulo. Um paradoxo entre pensamentos, ações, lembranças e momentos.
Sei que não deixarei de acumular. Acumulo coisas muito mais bonitas e abstratas que e-mails ou SMS. Coleciono, por exemplo, sorrisos. De todo mundo, em todos os momentos. É inevitável, devo ser um maníaco. Mas acho bonito ver um sorriso sincero e infelzimente, não se vê tantos por aí. E quando vejo um, sinto-me realmente feliz por estar ali, mesmo que o sorriso não seja pra mim. A felicidade é o tipo de coisa que eu não consigo deixar de acumular. Acumulo também momentos, sensações abstratas. Primeiras impressões. O cúmulo das impressões. Idéias, pensamentos. Cores, formas. Abstrações, todas as abstrações. E esse tipo de acúmulo é tão positivo e engradecedor que não sei se conseguiria deixá-lo de lado. Não poderia. É parte de mim, tão natural.
Observar-absorver-refletir-construir-destruir-construir.
É um reprocesso de mim, constante. Eu e o mundo. Em uma briga diária. Em uma valsa constante. O amor. A raiva. o amor, o amor, o amor. O acúmulo.
Julgava ter nas mensagens de e-mail o mesmo tipo de acúmulo que me é natural. Talvez seja. E seja natural acumular. E seja natural deixar evaporar. Talvez seja tudo muito natural. Não quero isso pra mim, não assim, se é assim que deve ser. Não preciso disso. Não quero isso.
Me desprendo do acúmulo mesquinho e imaginário. Acumularei apenas as minhas abstrações e toda essa sorte de coisas que me emocionam porque são simplesmente humanas e verdadeiras. Faço disso um compromisso.

não.
Não tenho outro compromisso senão em ser fiel a mim mesmo, à verdade. Não há nada se não sou sincero comigo mesmo. Não há nada sem a minha obsessão com a sinceridade. Que o processo de acúmulo ou desprendimento seja apenas derivado disso. Porque se eu sou sincero e honesto, o acúmulo se esgotará por si. E me desprenderei da mesma maneira.

20080514

tudo é sagrado
tudo é sagrado
(se)
tudo é sagrado

nada é sagrado.

20080504

Droga

Algo me diz que alguma coisa deve estar profundamente errada no seio familiar quando sua mãe o questiona sobre uma mancha em uma camiseta sua, você responde "Deve ser por causa da heroína" e ela responde "Ah, a brown sugar". "Brown sugar, mãe?". "É, não é assim que eles chamavam?".

Porra. Retomando meu discurso, alguma coisa deve estar profundamente errada no seio familiar quando sua mãe conhece tal gíria pra heroína e trata isso com tamanha naturalidade. Não sou referência para gírias de rua, claro. Mas, em todos os meus anos de infância no Bronx nunca ouvi tamanho absurdo. Brown sugar é a versão mais barata de heroína e com qualidade das mais questionáveis, por isso é marrom.

Fico preocupado com a minha mãe. A de boa qualidade é branca.

Papo firmeza

A semana que passou foi uma semana de recesso escolar na Metodista. É o equivalente ao Spring break de universidades norte-americanas, canadenses, japonesas, etc. Na Universidade Metodista de São Paulo é conhecida como "Semana do Saco Cheio".

Trabalhei até quarta-feira (porque na quinta-feira foi feriado, felizmente) e até às 22h30 da quarta-feira, o que significa que a Semana do Saco Cheio valeu meio que o mesmo que um saco de merda, quando estimamos que eu deveria estar em recesso, lendo meus trabalhos e fazendo as minhas pesquisas para o TCC. Só consegui fazê-lo a partir de quinta-feira e, desde então, tô em um bate-papo firmeza com o meu amigo, o Freud. O Lynch às vezes aparece e conversa um pouco também.

Em resumo, o meu TCC buscará analisar, ahem, "A influência dos sonhos na construção e desenvolvimento do Processo Criativo" e, como estudo de caso, analisaremos a obra de David Lynch. A pesquisa está caminhando muito bem mas me assusta um pouco a composição do texto que terá de ser feita, em breve. Não tanto assim, claro. Nos meus bate-papos firmezas com o Freud eu aprendo bastante e além disso, gosto quando ele comenta que a obra de outro autor sobre os sonhos é "volumosa mas sem consistência" ou coisas do tipo. Ele é um velho meio intragável, concordo mas, é sensacional ler esse tipo de comentário em notas adicionadas em edições posteriores do livro (mas anteriores já há uns 99 anos atrás). É uma literatura densa, um pouco difícil. Mas de inegável charme e valor. É definitivamente interessante e instigante. Fugi um pouco para escrever aqui, fazer um ou outro trabalho necessário e então, voltar ao Freud.

Um exemplo clássico do charme Freudiano.

20080502

Um favor

Faça um grande, grande favor a si e vá o quanto antes ver a Nano — Poética de um Mundo Novo.

Fique receptivo, perceba as nuances de tudo, mantenha-se crítico e efêmero. É profundamente recompensador. Uma exposição aparentemente minúscula porém, filosoficamente massiva. Até nesse sentido parece que foi minuciosamente montada.



Fica no Museu de Arte Brasileira da FAAP (rua Alagoas, 903) até o dia 1º de junho e é gratuita.