20100225

A sense of struggle

      Há uma sensação que é difícil definir e não sei se todos os seres humanos conseguem percebê-la ou mesmo controlá-la. Não acho que seja controlável ou passível de antever que isso vai acontecer. É um sentimento de nada, de crise pessoal e profissional. Uma nada errado, de passos em falso e de incompetência. Acredito que todos nós passemos por isso, em pelo menos um momento de nossas vidas e se não são esses pequenos incidentes pessoais que ajudam a construir nosso caráter e nossa visão de mundo, eles ao menos são suficientes para causar alguma auto-reflexão para seguir em frente ou desistir de uma única vez, porque o nada gera algo, uma sensação. Outro dia, encontrei nos olhos de Clarice essa sensação. Clarice sempre fora uma grande amiga minha, até onde posso me lembrar. Sempre tivemos uma relação extremamente espontânea e natural, assim como foi natural nossa aproximação e amizade. Ela sempre tivera uma personalidade incrível, intensa, sincera e carinhosa. Mas de vez em quando ela passava por esses momentos de ligeira depressão. Durava um dia ou uma semana. Era súbito. Aos olhos estranhos, com certeza Clarice parecia apenas uma mulher desesperada por atenção. Eu sabia que não era o caso, mas não sabia bem como e se eu podia ajudá-la.
      Se outras vezes isso já tinha acontecido, por que me importar com essa sensação nos olhos de Clarice desta última vez? O fato é: sempre me importa, sempre me importou e sempre senti a minha fragilidade refletida na dela e além de uma identificação com o problema em si, não poderia simplesmente subjugar Clarice especialmente em um momento tão próprio e delicado. Se por si isso já me era suficiente, neste dia me pareceu infinitamente mais forte, triste, desolado e inevitável. Mas o que alguém pode fazer por outra pessoa uma vez que cada pessoa só é responsável pela própria felicidade e vida? Eu poderia dizer muitas palavras bonitas, bem colocadas. Mas se aprendi algo em dadas circunstâncias seria que neste momento, quando se trata realmente disso e é sincero, são necessários sinceridade e honestidade plausíveis. Nada de eufemismos ou elogios excessivos. No final das contas, pra mim, esta sinceridade é a única coisa que as pessoas devem umas às outras em qualquer situação.
      Abordei Clarice, gentilmente. Ela estava em um furacão de pensamentos confusos, percebia uma tempestade através de seus olhos. A perguntei o que havia. Ela subiu seus olhos avermelhados e tristemente respondeu um curto "nada" e voltou a atenção para o monitor em que ela trabalhava. Pego uma cadeira e me sento ao seu lado.
      "Mesmo?", questiono.
      "Sim, claro. Por que a pergunta?" Clarice me questiona de volta, com alguma agressividade defensiva natural.
      "Ah... Você parece chateada, triste. Está quieta e não sei... Diferente." respondo enquanto tocava seu ombro.
      "As pessoas não são sempre iguais, todos os dias" ela comenta com a mesma dureza anterior, desvencilhando-se de minha mão.
      Fiquei calado por alguns instantes, ao seu lado. Eu estaria sempre ao seu lado, independente de um momento de grosseria ou atitude pouco pensada. Ela sabia disso. E os poucos minutos que passei ali ao seu lado parece que foram suficientes para que ela percebesse isto porque foi Clarice quem me abordou, então.
      "Olha, Gregor..." ela fez uma pausa e continuou em seguida "Desculpe por ter sido grossa contigo é que tá foda".
      "Não se preocupe, Cla... Mas me diga, o que houve?"
      Ela continuou encarando o monitor por algum tempo. Então, como se tivesse se enchido daquilo também, se virou pra mim e falou:
      "Hoje acordei meio deprimida, não sei. Me sinto em uma crise de algum tipo. Na real mesmo, não é nem de hoje. É como se fosse um processo que explodiu agora."
      "E sabe de onde isso veio?"
      "Não sei, nem ideia."
      Calamos os dois. Nossos olhares se cruzavam a três metros de nós, encaravam o nada. Senti uma tremenda angústia como se de fato dividisse a dor de Clarice. Mas eu não dividia. Eu dividia o nada. O nada que é invísivel e material. Quando tudo lhe é arrancado, você tem nada. Quando nada lhe resta, não é vazio. Ele ocupa todo o seu espaço, escapa pelos olhos, cobre os ouvidos, fecha a traquéia e pára o coração. É tão sentimento como o amor ou o medo. Não costuma ser definitivo, mas uma vez que se experimenta, ele nunca se vai, porque há sempre uma parte em nós em que nada fica. Quanto menos você tem, mais espaço você consegue e esse conflito é constante. É difícil viver com o próprio nada já que queremos e buscamos tudo. Buscamos anular o nada, mas como uma arma, o nada só ganha cores dependendo de onde se aponta e da pressão sobre o gatilho. Portanto, é fugaz: quando o gatilho é pressionado e ele ganha suas cores, ele deixa de ser nada e se torna algo. Nada não é bom, tampouco tudo é. Algo é melhor, menos absoluto e dogmático. Há algo em tudo e em nada. É uma medida tão criteriosa e precisa que algo deveria ser uma unidade de base para a grandeza da quantidade de matéria e imatéria, ou usado como uma lente. Dependendo da direção que essa lente aponta, mudam-se as quantidades e os valores. Algo, como tudo e nada, é adimensional. Mas tudo e nada se perdem em valores infinitos, positivos e negativos. O algo pondera.
      Passei a mão nos cabelos de Clarice, beijei seu rosto e deitei em seu ombro, acariciando a sua mão.
      "Você sente alguma coisa?", perguntei.
      Clarice manteve-se em silêncio e parou de se debater. Clarice ponderou.
      "Estou me esforçando para isso. Mas sinto um desejo, uma sensação de me livrar dessas restrições.", ela me respondeu calmamente.
      Eu não a respondi. Apertei sua mão contra a minha e a deixei ali, voltando para o meu trabalho.

      Clarice, você não pôde notar naquele momento, mas o que você percebeu como momento da explosão de um processo foi o momento que você pressionou o gatilho no nada. Algo já estava em processo e mesmo que eu não pudesse dizer nada para ajudá-la, sequer precisei tentar fazê-lo, você já estava caminhando. Eu não fiz nada, você fez algo e fiquei tão feliz porque o algo não é instantâneo, mas já é o algo. E leva tempo, Clarice. Também sinto minhas crises me escapando pelos olhos, cobrindo meus ouvidos, fechando minha traquéia e parando meu coração, assim como você. Sei como você se sentia, apesar de não ter sentido em seu lugar. E naquele momento eu percebi que você já estava em algo e isso me tranquilizou. É como um acalanto. É reconfortante saber que alguém que amamos tanto conseguiu encontrar o algo, ainda que todos nos perdamos vez ou outra. Clarice, você já estava em algo e em algo agora está. Suas cicatrizes deixam marcas em todos nós, tenho suas cicatrizes invisíveis em mim. E sei que você tem as minhas. E deixamos cicatrizes e marcas em tantas pessoas que não percebemos que as cicatrizes são lembranças de que nada aconteceu, mas que já passou. E as cicatrizes que recebemos são lembranças que não estamos solitários. Às vezes você vai se sentir sozinha, mas jamais estará solitária.

      Olhei para trás e Clarice estava olhando mais uma vez para o nada. Em seguida, desvencilhou o olhar, o repousou em mim e sorriu. Clarice tinha algo e subitamente, ela o sabia.

Acidentes

      Minhas questões sempre foram demasiadamente humanas, mas não físicas ou materiais. Demasiadamente humano, assim como somos e nem sempre possamos admitir. Sempre me interessei pelas falhas, pelas pequenas belezas acidentais, pelo acidente de viver e morrer, adoecendo e sarando de amores, fugas, tempestades e gripes. Pela pequena morte que nos aguarda, pela pequena vida que surge. Essas miniaturas todas, coexistindo sem saber se de fato existem.
      Devo estar ficando louco, mas recentemente fiquei extremamente interessado em acidentes de carro. Mais especificamente, atropelamentos. A súbita interrupção de uma pessoa, de uma vida. O súbito momento que o motorista não viu aquela pessoa atravessando a rua ou simplesmente cruzou o sinal vermelho e atingiu alguém. O rompimento do silencioso pacto entre motoristas e pedestres, a violação instintiva das regras e da vida, a destruição simples de uma vida igualmente tão simples quanto complexa. Alguns instantes entre a pura ignorância da existência para uma ligação emocional tão forte. Instantes com o tempo de um choque; um contato tão violento que rompe a carne, tinge o metal, encharca os olhos e turva a visão. Você consegue ver a beleza disso tudo? Não desejo atropelar ninguém, nem desejo a minha morte, sequer aprecio observar atropelamentos alheios, não se trata disso. É apenas dado fato que subitamente considero fascinante, de extrema beleza, que me causa comoção. Me parece simplesmente poesia. Não se trata da morte ou dos aspectos negativos. É comovente como isso pode acontecer com tantas coisas ao redor, tudo torna-se suspenso. Ninguém entende muito bem, todos temem por encarar a própria mortalidade ali, num pobre coitado. E pouco depois, se foi.
      E essa poesia acontece sem ninguém esperar, sem preparativos, rituais ou expectativas. É uma poesia pura.
      Note que não estou citando suicidas, maníacos ou pervertidos. Considero-os dentro de suas próprias categorias, longe desta. Esta trata-se da delicadeza da carne e dos ossos em direta justaposição ao peso das máquinas e do metal. O acaso violentando mutuamente carne e metal, sacralizando culpa e redenção. Há uma beleza tão abstrata nisso que após o baque é possível deitar sobre o silêncio que toma o lugar. Um silêncio tal qual se todos, naquele instante, tivessem contato com a poesia e não conseguissem mais exprimir as palavras usuais nem os ruídos rotineiros. Nos admitimos humanos para então apenas sê-lo mais uma vez, inconscientemente.
      Todos os sons voltam e a poesia termina. Há apenas um corpo no chão, um homem culpado atrás do volante e uma multidão confusa sobre a situação.
      A confusão é justa. Muitos somos os acidentes de uma relação e sempre buscamos o controle sobre todas as etapas a seguir. É realmente confuso quando percebemos a miniatura das coisas. Quando percebemos em um único instante que o choque entre gente e carro, carro e chão, chão e gente foi apenas uma forma e exibição extremas do contato e ligação que há entre tudo e todos, constantemente em movimento ainda que parecessem imóveis e distantes. A física quântica e algumas religiões colocam isso, mas só conseguimos perceber isso através da poesia ocasional que estremece nossas bases.
      E ironicamente, apesar do livre e constante contato, mesmo em um atropelamento, nós jamais nos tocamos. Permanecemos como somos, todos ligados entre si, seja gente, seja pedra. E sempre distantes uns dos outros, sozinhos. Do nascimento ao fim da vida.
      Talvez a maior razão da dificuldade de nos admitirmos humanos. Porque dói.