Minhas questões sempre foram demasiadamente humanas, mas não físicas ou materiais. Demasiadamente humano, assim como somos e nem sempre possamos admitir. Sempre me interessei pelas falhas, pelas pequenas belezas acidentais, pelo acidente de viver e morrer, adoecendo e sarando de amores, fugas, tempestades e gripes. Pela pequena morte que nos aguarda, pela pequena vida que surge. Essas miniaturas todas, coexistindo sem saber se de fato existem.
Devo estar ficando louco, mas recentemente fiquei extremamente interessado em acidentes de carro. Mais especificamente, atropelamentos. A súbita interrupção de uma pessoa, de uma vida. O súbito momento que o motorista não viu aquela pessoa atravessando a rua ou simplesmente cruzou o sinal vermelho e atingiu alguém. O rompimento do silencioso pacto entre motoristas e pedestres, a violação instintiva das regras e da vida, a destruição simples de uma vida igualmente tão simples quanto complexa. Alguns instantes entre a pura ignorância da existência para uma ligação emocional tão forte. Instantes com o tempo de um choque; um contato tão violento que rompe a carne, tinge o metal, encharca os olhos e turva a visão. Você consegue ver a beleza disso tudo? Não desejo atropelar ninguém, nem desejo a minha morte, sequer aprecio observar atropelamentos alheios, não se trata disso. É apenas dado fato que subitamente considero fascinante, de extrema beleza, que me causa comoção. Me parece simplesmente poesia. Não se trata da morte ou dos aspectos negativos. É comovente como isso pode acontecer com tantas coisas ao redor, tudo torna-se suspenso. Ninguém entende muito bem, todos temem por encarar a própria mortalidade ali, num pobre coitado. E pouco depois, se foi.
E essa poesia acontece sem ninguém esperar, sem preparativos, rituais ou expectativas. É uma poesia pura.
Note que não estou citando suicidas, maníacos ou pervertidos. Considero-os dentro de suas próprias categorias, longe desta. Esta trata-se da delicadeza da carne e dos ossos em direta justaposição ao peso das máquinas e do metal. O acaso violentando mutuamente carne e metal, sacralizando culpa e redenção. Há uma beleza tão abstrata nisso que após o baque é possível deitar sobre o silêncio que toma o lugar. Um silêncio tal qual se todos, naquele instante, tivessem contato com a poesia e não conseguissem mais exprimir as palavras usuais nem os ruídos rotineiros. Nos admitimos humanos para então apenas sê-lo mais uma vez, inconscientemente.
Todos os sons voltam e a poesia termina. Há apenas um corpo no chão, um homem culpado atrás do volante e uma multidão confusa sobre a situação.
A confusão é justa. Muitos somos os acidentes de uma relação e sempre buscamos o controle sobre todas as etapas a seguir. É realmente confuso quando percebemos a miniatura das coisas. Quando percebemos em um único instante que o choque entre gente e carro, carro e chão, chão e gente foi apenas uma forma e exibição extremas do contato e ligação que há entre tudo e todos, constantemente em movimento ainda que parecessem imóveis e distantes. A física quântica e algumas religiões colocam isso, mas só conseguimos perceber isso através da poesia ocasional que estremece nossas bases.
E ironicamente, apesar do livre e constante contato, mesmo em um atropelamento, nós jamais nos tocamos. Permanecemos como somos, todos ligados entre si, seja gente, seja pedra. E sempre distantes uns dos outros, sozinhos. Do nascimento ao fim da vida.
Talvez a maior razão da dificuldade de nos admitirmos humanos. Porque dói.