20051215

(Sem título)

É isso aí. Menos pretensão e mais ação.
Isso aí. Menos pretensão e mais ação.
Sso aí. Menos pretensão e mais ação.
So aí. Menos pretensão e mais ação.
O aí. Menos pretensão e mais ação.
Aí. Menos pretensão e mais ação.
Í. Menos pretensão e mais ação.
. Menos pretensão e mais ação.
Menos pretensão e mais ação.
Enos pretensão e mais ação.
Nos pretensão e mais ação.
Os pretensão e mais ação.
S pretensão e mais ação.
Pretensão e mais ação.
Retensão e mais ação.
Etensão e mais ação.
Tensão e mais ação.
Ensão e mais ação.
Nsão e mais ação.
São e mais ação.
Ão e mais ação.
O e mais ação.
E mais ação.
Mais ação.
Ais ação.
Is ação.
S ação.
Ação.
Ção.
Ão.
O.
.

20051209

O (fantástico) Guia da Folha

No jornal Folha de São Paulo, às sextas-feiras, vem uma pequena revista em papel jornal, um roteiro de clubes, baladas, bailinhos, restaurantes, cinemas, espetáculos teatrais e de dança e tudo de mais quentinho que tá aí pela cidade de São Paulo. É o famoso Guia da Folha, aquele negócio que você vê na mão de modernos e cinéfilos escrotos em mostras de cinema de qualquer tipo e congêneres. Apesar de tudo, eu gosto do Guia da Folha. Principalmente de uma sessão lá pro final, antes das também adoradas Cruzadas chamada Cartas. Local onde geralmente, pessoas frustradas e sem culhões reclamam do serviço de restaurantes, cinemas e etc, ora porque dizem que o gerente tirou sarro da cara delas, ora porque acham que colocando uma reclamação assim, pública, todos dirão "Que horror, não vou mais em tal lugar". Acontece que os lugares que recebem a reclamação são do segundo grupo e, geralmente, se desculpam prontamente, oferecem serviços gratuitamente ou dizem que tal dia era um mau dia. Essas mentiras todas. Acontece que um dia as coisas não ocorreram como o esperado. No Guia publicado ao dia 18 de novembro, estava publicada as seguintes cartas, seguidas da resposta do estabelecimento.

FILA DE AMIGOS
Três amigos e eu fomos conhecer o Bar Berlin, no dia 11/10, e enfrentamos uma fila de 40 minutos. Nesse tempo, várias pessoas entraram antes de nós, alegando que eram amigas da casa. Decidimos reclamar e protestar, e outras pessoas da fila nos apoiaram. Deixamos o local decepcionados com a situação e com a noite perdida.
Ricardo Fonseca, 34, bancário

Estive com um grupo de amigos, no dia 11/10, no Bar Berlin. Havia uma fila enorme para entrar. O que causou indignação não foi o tempo de espera, mas o fato de que o segurança organizava uma fila paralela para os que se diziam amigos dos donos do bar. Resumo da ópera: de uma só vez, dez pessoas ficaram revoltadas e acabaram indo embora, entre elas, eu. O meu desabafo é para alertar outros incautos e constatar que realmente esse tipo de privilégio já está incrustado nas entranhas do brasileiro.
Anselmo P. Ribeiro, 46, gerente administrativo


Marcelo Schenberg, proprietário do Berlin:
A casa permite a entrada de clientes VIP, prática adotada não só nas casas noturnas de São Paulo mas também nas melhores baladas de cidades como Nova York e Londres. Há motivos para tanto, que não dizem respeito a outros que não ao staff da casa.

Hahahahahahahahahahahah.

20051117

"Breve descrição histórico-psicológica de personagens"

     Dolores mora com a mãe, Rosa, em um pequeno apartamento, na área antiga da cidade, no terceiro andar. No andar superior, mora Elisa e Fernando, casados a pouco mais de dois anos. Foi um casamento arranjado às pressas, pois a garota estava grávida. Não que ela não o amasse, e vice-versa, mas provavelmente, se não houvesse criança nenhuma, não haveria nenhum relacionamento. Mesmo assim, um mês ou dois depois que eles haviam se mudado, a garota acidentou-se, perdendo o bebê. Ela tropeçou na escada e assim como a criança veio, foi. No entanto, Elisa não recobrou o humor, ficando em um estado semivegetativo, um tanto cataléptica, voltando a si, de tempos em tempos, por instantes, falando palavras desconexos por um curto período de tempo, solitária, impulsiva, entrando em choque novamente, em seguida.
     Seu marido, um rapaz de 21 anos, precisa cuidar da esposa, portanto, não trabalha. A renda do casal é oriunda de uma mesada oferecida pelos sogros do rapaz, tão bem intencionado. Ainda assim, provavelmente por súbitas fraquezas de caráter, Fernando gasta o dinheiro com prostitutas e deixa a mulher abandonada. Não inteiramente abandonada, afinal, ele está sempre no apartamento. Inicialmente, tinha a delicadeza de satisfazer-se escondido, deixando a mulher no quarto e comendo as putas na sala. Até que certa vez, num descuido ou por pura perversão, Elisa estava na sala. A prostituta, obviamente, percebeu a presença da mulher no cômodo e olhava-a com curiosidade, que por sua vez, estava com os olhos vazios, fitando o nada, assim como os catatônicos fazem. O rapaz, um recém-descoberto voyeur às avessas, tornou aquilo um hábito.
     Esse hábito logo ficou conhecido por todos no prédio, é claro. Mas não era tão repudiada por todos, aparentemente. O assunto tornou-se um tabu instantâneo e afinal, o rapaz estava na flor da idade, precisava satisfazer-se sexualmente.
     Não é necessário dizer que Dolores era contrária à opinião de todos. De início, argumentava e discutia, incansavelmente, com todas aquelas pessoas, mas no fim, percebeu que era melhor seguir seu caminho em silêncio do que punhetar aqueles pervertidos aos gritos. E não era à toa; desde que Elisa mudou-se para o prédio, Dolores gostou da garota. E apesar de ser considerada até mesmo por parentes e pessoas próximas, uma pessoa com falta de compaixão e sensibilidade, de excessiva racionalidade, Dolores cumprimentava Elisa e realmente sensibilizou-se quando ela perdeu o bebê. Talvez, fosse porque Dolores, há alguns anos, viu-se encurralada por uma gravidez não desejada, porém não teve coragem, ou vontade, de casar-se e antes que alguém pudesse notar, ela estava livre de qualquer aborrecimento. Não se abalou tanto quanto a vizinha, mas do alto de sua benevolência podia compreender o sofrimento alheio porque era um sofrimento perfeitamente justificável.
     Sendo assim, Dolores repudiava Fernando e alimentava e limpava Elisa, quase que diariamente. O rapaz nunca trancava a porta e mesmo que trancasse, Dolores tinha uma cópia das chaves. Os vizinhos também sabiam que Dolores ajudava Fernando, e também achavam completamente natural, pois um rapaz de apenas vinte e um anos não poderia, de qualquer maneira, cuidar de uma mulher doente assim, sozinho. Dolores achava-o um escroto, assim como todas e quaisquer outras pessoas do prédio, incluindo ela. Aliás, Dolores tinha em Elisa uma visão de pureza e bondade máxima. Nunca conversou com ela, anteriormente, porém Dolores era capaz de decifrar uma pessoa apenas pelo olhar, pela sua maneira de andar, pelo tom de sua voz. Vai ver era por isso que ela cuidava da amiga com tanta devoção.
     A mãe de Dolores não fugia à regra: Também era uma escrota. E cada escroto tem suas próprias razões para carregar esse título, e felizmente a perversão não era um motivo da escrotidão da mãe. Ou melhor, pelo contrário. Não era puritana ou pervertida, muito menos amorosa com a família ou com um vagabundo qualquer na esquina; Dezessete anos após o divórcio, Rosa tornou-se indiferente à tudo, à todos, à si mesma. Lentamente, despiu-se de qualquer ambição e atualmente, havia se colocado de maneira tão alienada em relação aos seus sonhos e desejos, que contribuía apenas às estatísticas demográficas. Seu estado não era assim tão diferente do de Elisa, por exemplo. Ela vivia em um estado vegetativo não declarado e mantinha-se longe de uma completa catatonia por pequenos fatores como, por exemplo, a voluntariedade de seus movimentos, a consciência de caminhar até o banheiro quando precisa ou as conversas diárias com os vizinhos, que não eram muito mais produtivas que a verborragia involuntária de Elisa.
     E por esses pequenos detalhes, Dolores tinha pena da mãe. Achava-a patética, uma carcaça velha e solitária que arrastava-se sobre seus chinelos, usando um vestido e uma espécie de avental, com bolsos grandes, onde guardava ferramentas básicas como chaves de fenda e alicates para consertar um detalhe ou outro, aqui e ali, lenços de papel, remédios diversos para todo tipo de enfermidade, existentes e desistentes, pregadores de roupa e algumas moedas, que provavelmente não tinham mais valor, enfim, carregava todo tipo de bugiganga, muito bem organizadas, aparentemente, para dar algum sentido e vocação à sua vida mas que no fim, não acrescentava em nada, mantendo-se nula e ordinária.
     Apesar disso, Rosa dizia se preocupar com a filha. Provavelmente, tinha um bom coração mesmo ou era só ignorante demais para perceber algo tão subjetivo como criar uma filha com tanta indiferença por cerca de dezessete anos. Nesse tempo, uma ou três vezes, envolveu-se com outros homens, sem nunca sentir-se satisfeita. Sentia-se satisfeita ao assistir televisão, isso sim. Sentava em frente ao aparelho e passava longas horas, alienando-se do mundo e de si mesma. Acostumou-se a isso. Percebeu que longe de si e do mundo, sem nenhum pensamento próprio ou ambição, podia considerar-se feliz.
     Rosa não viu quando a filha passou por uma crise emocional relativamente rápida por conta de um aborto bem sucedido e apressado. Muito menos quando Dolores pintou os cabelos de vermelho fogo, assim que terminou a escola. Mais ou menos na mesma época em que ela procurava um emprego e considerava prostituição um trabalho honestíssimo e em seguida, quando trabalhava de caixa em um supermercado, que devia ser um trabalho muito mais divertido, mas manteve-se no mercado porque, no fim das contas, não se achava suficientemente atraente para alguém pagar para comê-la. Rosa também não viu isso.
     Depois do emprego no mercado, onde ela trabalhou por um ano, pouco mais, Dolores conseguiu um emprego de garçonete em uma lanchonete/boteco ao lado de sua casa. Não tinha que pagar condução, o salário era um pouco melhor e ela não tinha que ficar com o rabo pregado numa cadeira por 8 horas seguidas. Além do que, seu chefe era um rapaz mais bacana. Tinha lá seus trinta e cinco anos, uma lanchonete mal-localizada, mas com clientes fiéis, pagava suas contas e sobrava algum dinheiro para suas diversões e perversões pessoais. Tinha um sorriso feio e não tinha um futuro promissor pela frente. E ele sabia disso. Aliás, qualquer idiota podia dizê-lo sem prestar muita atenção. Porém era diferente, porque apesar de tudo, ele tinha suas ambições pessoais, ele sabia o que ele queria da vida. Ele queria ser famoso, o típico sonho suburbano de pelo menos 90% da população mundial. E assim como 88% deles, não tinha o menor talento para nada. Não sabia cantar ou dançar, tocar um instrumento ou jogar bola. Desenhava como um retardado e escrevia poesias cheias de eufemismos desnecessários, cacofonias e lugares comuns. Não sabia atuar tampouco programação. Tinha tanta habilidade matemática quanto um cavalo e sabe-se lá como conseguiu abrir um negócio e manter-se vivo por tanto tempo. Não era rico, mas também não passava fome. Apenas ambicionava demais e dizia ter aquilo como temporário. Afugentava os pensamentos de desilusão e fracasso com mais ilusões e pseudoprosperidades, tal qual uma pessoa autoflagelando-se para esquecer uma dor de cabeça ou uma incapacidade de qualquer espécie.
     No entanto, e isso Rodolfo parecia ser incapaz de perceber, ele tinha uma extrema habilidade de lidar com as pessoas, com qualquer tipo de pessoa. Apesar de perder a cabeça de vez em quando, e ele tinha suas razões, no geral ele era comedido e sabia portar-se numa sociedade dita-evoluída. Provavelmente era por isso que seu negócio manteve-se sólido por tantos anos a fio. E Dolores achava isso bonito. Provavelmente foi por isso que aceitou o emprego. Uma coisa carismática mesmo, uma maneira apaixonada de ver as coisas e falar sobre elas. No fundo, todos apreciavam isso, mas todos são ignorantes e egoístas demais para gastar alguns minutos realmente prestando atenção nas outras pessoas ao seu redor. Ou então são antagonistas a isso. Pessoas desprovidas de qualquer sensibilidade, que assim como a grande maioria, não têm uma vida própria e dedicam-se a cuidar da vida alheia. Os poucos minutos de reflexão que todos deveriam fazer sobre as pessoas ao seu redor não são mais do que alguns segundos parcos que rapidamente transformam-se em informação fútil, do tipo que todo mundo gosta de saber, mas não gostam de admitir. E no prédio de Dolores, como via de regra, morava uma senhora, que no fundo nem tão velha era, que ficava de conversa fiada pelos corredores e arredores, com qualquer intrometido que cruzasse seu caminho. Seu nome era Marta e sua idade, não definida. Porém, passava o dia vivendo da pensão que recebia mensalmente, pela morte do marido em um acidente na fábrica de assentos sanitários, que matou dois. Ângelo e Samuel, respectivamente o finado esposo e o finado amante. Abalada pelo duplo choque, Marta decidiu, enquanto chorava sobre o caixão do marido, que passaria a ser temida pelas pessoas antes que todos pudessem de alguma maneira atacá-la e/ou esquecê-la. Desde então, há cerca de 13 anos, ela supre sua carência cuidando da vida alheia, pois sua vida pessoal é algo doloroso demais para ela conseguir lidar com. Seu apartamento ainda vive de reminiscências do passado. Na sala, um retrato de Ângelo, imaculado, junto de suas cinzas e um pequeno altar, onde ela, diariamente acende uma vela para o defunto e semanalmente troca as flores. No quarto, longe dos olhos dos curiosos e de Ângelo, o retrato de Samuel permanece olhando-a enquanto ela dorme, assim como ele gostava de fazer, antes de morrer. A casa também está inalterada, os móveis, velhos e rangendo, são os mesmos, com a adição de alguns buracos no estofamento do sofá da sala e pó, em toda a casa. Nem as roupas do marido ela tirou do armário. Tudo continua lá.

20051109

Chave no Coelho

Jóia!


Olá, amigo.
Você já notou a pequena coluna de fotos que se encontra no menu ali ao lado?

Não?

Já?

E os comentários, agora provisórios, porém funcionando? Notou?



Eu já devia imaginar.

20051104

Dolores.txt

   Rosa entrou em casa, visivelmente nervosa. Suas mãos, úmidas pelo suor, seguravam a bolsa junto ao corpo, cansado e dolorido, após um longo dia de trabalho.
   Ela encontrou o marido na cozinha, com uma lata de cerveja numa das mãos e um sorriso besta no rosto. Rosa olhou-o com desprezo, ódio. Seu rosto, antes sempre sereno, abrigava uma expressão amarga, cheia de repulsa. O marido a olhou, sem compreender o que acontecia e aproximou-se da esposa.
   A mulher nada conseguiu dizer; apenas largou a bolsa, olhando seu homem fixamente nos olhos para então virar-se e ir para seu quarto.
   Sentada à mesa, Dolores, a filha do casal, assistiu à cena, atônita. Viu o pai abaixar-se para recolher a bolsa e passou alguns minutos encarando o objeto, pensativo. Uma figura imóvel, solitária, no meio da cozinha. Para Dolores, aquilo durou horas e nada precisava ser dito, afinal, aquilo parecia ser mesmo inevitável. Sentiu medo.
   Durante a madrugada, ouviu os pais discutirem, novamente. Não era a primeira vez e Dolores tanto desejava quanto temia que fosse a última. A confusão, aquelas palavras feias, a voz chorosa enquanto firme da mãe. O som grave do pai, incisivo.
   A garota podia sentir a mágoa pulsando junto de seu coração. Uma mágoa adquirida daquele medo. A sensação de traição, destruição. Uma necessidade urgente de liberar-se, abraçar os pais e dizer, com sua voz, típica de uma garota de seis anos, Tudo vai ficar bem, acalmem-se. No entanto, não conseguia se mover. Não queria se mover; queria deixar aquelas sensações ruins para trás, Tudo ficará bem pela manhã, você só precisa dormir, Lolita, um pouco de sonhos e sono lhe fará bem, você verá. Queria rezar, mas não lembrava de nenhuma oração. Contentou-se em cantar uma canção, para si, um tanto melancólica. Tentar fazer os gritos desaparecerem e estar tudo normal, amanhã, de manhã. A dona Aranha subiu pela parece, veio a chuva forte e a derrubou; Rosa, cala essa boca, não vou aceitar isso, de maneira alguma; já passou a chuva, o sol já está saindo; não me manda calar a boca, você não tem saída e sabe disso; e a dona Aranha continua a.
   Pela manhã, tudo estava silencioso, novamente. Dolores levantou-se, com cuidado e desceu até a cozinha. O pai já tinha saído pra trabalhar. A mãe, de olhos vermelhos, encarava uma xícara de café como se fosse veneno. Nenhuma palavra foi dita quando a garota adentrou o recinto e nem mesmo quando sentou-se à mesa. Mesmo assim, Dolores seguiu seu ritual. Encheu um copo de suco de laranja, tomou-o lentamente, gole por gole, até esvaziá-lo por completo. Cortou um pão no meio, abriu-o, passou margarina, jogou achocolatado em pó. Enfiou no microondas. Trinta segundos.
   Tirou o pão e sentou-se novamente à mesa. Ao lado da mãe. Olhava fascinada o vapor sair do pão aberto, com o chocolate misturado à gordura, uma aparência repugnante e ainda suculenta. Dolores fechou delicadamente o pão e devorou-o da mesma maneira calma e cuidadosa que teve para com o suco. Mastigava cada pedaço, trinta, quarenta vezes, aproveitando a mistura de sabores até aquilo virar uma massa homogênea e insípida. Então engolia.
   Na terceira mordida, seu ritual foi interrompido, brevemente, pela voz áspera e direta da mãe, com cheiro de álcool e tristeza.
   -Seu pai não volta mais.
   A garota encarou a mãe, que voltara o olhar para a xícara de café e não sabia o que dizer. Quis gritar, tentar trazer o pai de volta, fazer a mãe feliz. Então engoliu. Mordeu outro pedaço do pão, dessa vez sem se concentrar, sem se divertir. Não conseguia mastigar com o cuidado e delicadeza usuais; não conseguia sentir mais esses prazeres nessas pequenas coisas; não mais. Não conseguia olhar para a mãe, tampouco para suas mãos. Se sentia suja, culpada. Sentia pena de si mesma, daquela mulher decadente à sua frente. Estendeu uma mão até alcançar a jarra de leite, despejando timidamente o líquido num copo limpo, de tom esverdeado.
   Seus movimentos eram constrangidos, ela não devia estar ali, ela não queria estar ali, se sentia uma estranha, uma indigente. Empurrou a cadeira devagar, fazendo-a ranger, sonorizando a cozinha até então silenciosa, como gemidos culpados e dolorosos.
   Cautelosamente, aproximou-se do microondas com o copo de leite na mão. Receosa, colocou o copo na bandeja do aparelho, tentando evitar qualquer cacofonia desnecessária. Contudo, o som do vidro fez-se ouvir, constrangendo ainda mais a garota.
   Ligou o aparelho e encarou os números arrastando-se no marcador digital. Não via mais sentido naquilo. Na vida. Tudo parecia suficientemente idiota e cretino, vazio de qualquer sentido mais profundo que não fosse o do olhar. Dolores sentiu-se idiota por não ter percebido isso antes. Era completamente óbvio! Os segundos no display corriam em ritmo de valsa. Dois pra lá, dois pra cá, infinitamente bailando. E sempre foi assim. Sempre será. E nessa dança, um pouco antes ou depois, as coisas se tornaram claras para ela. A vida ficou rasa frente aos seus olhos, ainda novatos e agora tão esclarecidos, assimilando rapidamente aquela valsa e conseqüentemente a vida.
   Foi aí, mais ou menos aí, que Dolores percebeu que a vida era monótona.

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20050420

Cravo Azul

   O dia amanhece, preguiçosamente, como se não quisesse amanhecer. E Marília acorda, com o sol na sua cara, não querendo acordar mas era tarde demais. As cortinas estavam escancaradas e se ela fosse algum tipo de vampiro, ela não teria visto o sol nascer quadrado, certamente. Ela ainda encara o prédio, que decora a vista privilegiada de seu apartamento, recobrando o pensamento. O sono já fora perdido há tantos minutos. Esse sim um vampiro, maldito. Bendito.
   Ela joga as pernas pra fora da cama e senta-se, tentando recuperar a energia perdida dos bruscos movimentos das pernas. Olha para a janela, olha pra sua mão esquerda. Corre os olhos para o despertador, ansioso, tic tac tic tac tic tac tic, ansioso pelo momento que iria acordá-la, oficialmente, dentro de uma hora. Olha a janela, novamente e segue o facho de luz até o chão, onde repousa um cravo, azul celeste, salpicado de manchas brancas. Marília encara a flor como quem encara uma ressaca. O que diabos aquela flor estava fazendo ali?
   Ela abaixa-se e o pega, delicadamente, pelo caule, longicaule, espinhoso, não azul. Aproxima-o do rosto, amassado pelo travesseiro, e cheira a flor, como se aquilo fosse responder à questão dela. O cheiro era de cravos, se parecia com um cravo e bem, obviamente era um cravo. Azul. No quarto dela. Ela levanta-se e caminha até a janela.
   Levanta a mão segurando o cravo pra tentar enxergar algo mais nele. E ao levantá-lo, contra o céu, Marília nota as cores delicadas nas pétalas perfeitas da flor. E era como se o cravo fosse a última peça de um quebra-cabeça pois ele parecia completar o céu. Parecia fazer parte dele, como se fosse invisível ou simplesmente uma gravura, ficcional. E não importava para onde ela o apontasse. Os ceús sempre se reverenciavam perante o cravo azul.
   Fascinada pelo estranho fenômeno, Marília, aponta-o para o sol. E como mágica, o sol pareceu estar nas pétalas do cravo. A garota então, bruscamente, puxa o cravo para dentro. E o sol continuava nas pétalas azul-celeste da flor.
   Assim sendo, o mundo viu-se coberto em escuridão, total escuridão.
   O caos! O apocalipse! Nas ruas, tudo é desespero. Na televisão, as pessoas pedem por ajuda, dão entrevistas. Eu já sabia que isso ia acontecer, está na Bíblia, o sol iria se apagar. Debates calorosos sobre o assunto são propostos à todo momento. Sempre havia um outro espertinho, querendo ser espertinho até na merda do fim do mundo. É impossível o sol se apagar, ele explodiria e todos morreríamos, sem percebermos ou ele viraria um buraco negro e seríamos sugados, entrando em colapso, em seguida. E a taxa de mortos aumenta consideravelmente, suicidas e desesperados. Atos desesperados. Outros tantos se reúnem em igrejas, procuram por respostas na fé, na igreja; Por favor, deus, não deixe que o mundo acabe agora, eu tinha um encontro com a vizinha gostosa logo depois de amanhã e minha mulher nem desconfiava. Quebra essa, deus. Amém.
   Marília, em seu ensolarado quarto, assiste tudo aquilo, da janela, com o cravo em mãos. A diversão já acabou, hora de colocar o mundo no lugar, ela diz.
   Então, ela levanta o cravo para o alto, como antes. Mexe pra cá e mexe pra lá. Não parece funcionar. E não funcionaria mesmo, afinal, no cravo era dia. E o dia está no cravo. Rapidamente, Marília concordou:
   Essa foi, de longe, a maior cagada que ela já fez.
   E ela sente fome. Ela ainda era humana, depois de tudo. Começa a preparar um pão com manteiga na chapa, cheia de culpa. Ela podia ouvir as manchetes. "Garota rouba o sol e faz pão na chapa"; "Mulher diz que fez o pão na chapa 'porque estava faminta'"; "Marília, o monstro que roubou o sol, será julgada hoje"; "Enforcamento, tiro, gás ou esquartejamento? Vote na pena mais indicada para Marília e ganhe um Ford, zerinho!"; "Traidora da humanidade é executada após 13 dias de torturas e sodomia panssexual"; "'Corpo da garota seria atirado contra o sol, se ele ainda existisse', diz especialista". Merda, ela tava fodida. Ela tinha que sumir com aquilo. Já. Antes que descobrissem que ela tinha o sol naquele cravo.
   Impaciente, anda de um lado pro outro, chacolhando a flor, praguejando.
   Era o fim dela. Não tinha jeito.
   Ela colocaria um fim à vida dela. Seria só mais um suicida pra aumentar ainda mais os recentes números.
   Precisaria, pelo menos, acabar com a flor. Então abocanhou o cravo, com vontade, ferindo seus lábios nos espinhos e mastigando, com violência.
   Sentiu vontade de chorar, sentia o sol escapando da flor, sentia seu coração batendo na nuca.

   Marília não sente mais nada.
   Caída em sua cama, encontrou uma escuridão ainda mais profunda e inevitável.
   O despertador toca. Ecoa.
   Marília acorda de sopetão, com o despertador gritando. Ofegante, viu ao redor seu apartamento, bagunçado e sujo, como antes. As janelas fechadas e o despertador ritmado. Ela sorri, desliga o alarme. Passando as mãos sobre os cabelos e levantando da cama, riu-se, aliviada. Num momento de reflexão e auto-crítica matinal, Marília diz pra si mesma frente à janela:
   -Sua filha da puta.

   Abrindo a janela, vê, novamente, a escuridão desesperadora do mundo. Olhando lá para baixo, apenas as poucas luzes artificiais de postes e carros batidos que iluminavam uma sociedade primitiva, em pânico. Marília, trêmula, olha para seu apartamento e vê, caído junto à cama, o cravo mordido, enegrecido, agora. Sente-se em colapso, sente a culpa e o remorso mais forte do que antes. Arregala os olhos e não tem tempo de sentir mais nada, sentindo-se desvanecer e ampliar-se, dolorosamente.
   Em seguida, a vida tinha retornado à normalidade. À mediocridade. As pessoas choravam apaixonadas, a merda continuaria. Todos continuariam levando suas existências detestáveis ao seus próprios limites, como sempre foi.
   Menos Marília.

   Marília virou o sol.

Nuevas!

Anthony Hopkins é eleito novo papa.



"Olá, Clarice."


   O conclave que durou apenas dois dias elegeu o ator Anthony Hopkins para ser o mensageiro de Deus na terra, de acordo com as tradições da Igreja Católica.


Anthony revelou que sempre ambicionou
o posto de líder da Igreja Católica.


   Nascido em 31 de dezembro de 1937, o ator natural do País de Gales tem uma extensa carreira, sendo premiado com o Oscar de melhor ator, por sua brilhante e sempre lembrada atuação como o psicopata canibal Hannibal Lecter em "Silêncio dos Inocentes" (1991).


O papa diz que é "humilde" e "trabalhador"


   Hopkins adotou o nome de Bento 16. "Apostei tudo que eu tinha num cavalo, semana passada, chamado Billie Jeans. Seu número era dezesseis. Graças ao bento animal, paguei minha fiança e posso estar aqui, hoje."


Sonho realizado.


   Apesar de ser o primeiro ator da história eleito à tal cargo, de tamanha importância, os fiéis festejaram ao ver o novo papa na basílica de São Pedro. O papa Bento "Hopkins" 16 não escondeu a alegria e disse: "Este será o maior papel da minha carreira".

20050403

Uma noite qualquer.

   O doutor Carlos acorda, no meio da noite, para tomar um copo d'água. Sua boca estava seca como nunca. E assim, desce as escadas, lentamente, meio sonolento, ajeitando o pijama listrado.
   Ele é casado há 5 meses, com uma bela mulher, Cláudia. Ele a ama, sem dúvidas. Descontroladamente. Ele então se recorda disso, nessa caminhada, quando passa em frente à um porta-retrato, com uma foto de sua lua-de-mel. Ele sorri, satisfeito. Eles tinham suas diferenças, sempre as tiveram. No entanto, agora, podia afirmar, com certeza, que eles ficariam juntos, para sempre.
   Chega à cozinha, e sem acender a luz, em meio à penumbra, arrisca-se a caminhar, como um notívago em treinamento. Um novato. Tateando os móveis e gabinetes, tropeçando bruscamente numa cadeira deixada em seu caminho, ele encontra a geladeira. Ao abrí-la, a gélida e amarelada luz toma conta do cômodo, iluminando-o, quase que totalmente. Pega uma garrafa na porta e bebe, afobadamente, deixando cair um pouco de água numa listra vermelha da camisa do pijama e mais um pouco no chão. Amanhã ele limpa isso. Ou sua esposa. Ele a ama tanto, ela deve fazer essas coisas pelo homem da vida dela. Coloca a garrafa de volta à porta, e antes de fechar a geladeira, dá uma última olhada no caminho de volta à saída da cozinha. E ainda assim, tropeça na mesma cadeira deixada no meio da cozinha.
   Ainda sonolento, faz uma parada no banheiro e sobe as escadas, preguiçosamente. Entra no quarto espreguiçando-se em direção à cama, onde senta-se. Olha o corpo da mulher iluminado pela luz do luar e fica satisfeitíssimo, com um misto de amor e desejo. Deita-se na cama e abraça-a por trás, passando uma perna por entre as pernas dela. Cheira seus cabelos e alisa seus seios.
   Beija-a atrás da orelha e suas mãos percorrem seu corpo, gélido e ainda sujo de sangue, exposto, maculando seus dedos, depravando seu espírito, gozando de uma paixão doentia e prazerosa. Cláudia, um corpo imóvel e apagado, é puxada pra junto de seu homem, que dorme em seguida, saciado, com uma mão em seu ventre e outra no profundo corte em seu peito, há muito coagulado.

20050328

Clara oo4

   -Beleza! A gente se vê então na Avenida dos Mafagafos, em frente ao cinema, lá pelas duas!
   -Tá legal.
   -Clara..
   -quê?
   -Toma cuidado.
   -..tá.
   Paulo desligou o telefone com um sorriso. As orelhas quase se juntavam atrás da cabeça de tanto que ele sorria. Ele assoviava uma canção. "There's no business like show business". Ele tinha um daqueles assovios bons de ouvir. Era um filho-da-puta, mas o desgraçado assoviava como um anjo. Junto ao assovio, ele dançava. Tentava fazer como nos antigos musicais, mas ele tem tanto gingado como um pato morto. Em um movimento inesperado, Paulo vai para o chão.
   -Que se dane, eu tenho um encontro com a Clara!
   Levantou-se num salto, abraçou seu labrador e rodopiando com o cão nos braços, ouvia uma valsa em seus ouvidos.
   Em seguida, correu para o banheiro. Tinha que estar impecável. Esse seria seu encontro mais importante. E também o mais desejado. Ele ama Clara desde seus onze, doze anos talvez. E desde então está sempre ao seu lado, sem saber como agir.
   Em poucos minutos estava pronto. Sim, estava impecável. Seus cabelos penteados, ainda úmidos, estrategicamente posicionados. A camisa passada e a calça, jeans, propositalmente amassada. Olha pela janela. Vai chover. Ele pega seu guarda-chuva - um daqueles belos guarda-chuvas grandes e que se parecem, vagamente com uma bengala, não aqueles retráteis, meio que embutidos, como pau de gato - e sai, de casa, esquecendo de alimentar o cão. Caminha rua acima. Roda o guarda-chuva cheio de uma alegria arrogante. Ele era dono do mundo, agora. Novamente assoviava, dessa vez era "Baby one more time". Dessa vez, sem dança, só o movimento contínuo do guarda-chuva xadrez.
   No ponto de ônibus, sua alegria parece irradiar às outras pessoas entediadas e conformadas. Todos os olhares se direcionam à ele e ele encara todos, um a um, com um sorriso besta, como se tivesse dado uma rasteira no Papa. Assim sendo, todos reagem como se ele fosse um completo idiota.
   Em alguns minutos, o ônibus chega e Paulo sobe, num salto. Ele provavelmente chegaria bem à tempo, em ponto. Com uma rigorosidade britânica, pensa enquanto passa pela catraca, sorrindo para o cobrador, recentemente desperto de um curto cochilo e com os cabelos despenteados.

ARQUIVOS      ...       Confere.

   É isso aí, marujos.

   Hoje tomei vergonha na cara e finalmente trouxe a grande maioria dos textos que estavam lá, juntando pó, no Blog-se (Lembrem-se, estamos no Blogspot agora!) e bem, não são todos porque uma coisa ou outra eu simplesmente achei que não envelheceu bem.

   Em compensação, o restante eu trouxe, sem cortes, com erros de digitação e um ou outro erro de português que existiam na época publicação.

   Divirtam-se.

20050212

O lançamento

   Elizabeth era uma mulher bem à frente de sua época.
   Ela não se sujeitava a nenhum homem. Tinha apenas um amor. Se dava ao luxo de escolher um homem e amá-lo, mesmo que secretamente. Seu nome era Charles.
   Mesmo solteira, Elizabeth mudou-se para um apartamento só seu em 1932, bem longe do chão. Era algo bastante incomum à época, porém era o que Elizabeth queria. E assim ela o fez.
   Ela já vivia lá há cerca de um ano quando se ouviu de uma nova atração. Algo revolucionário. Único. Todos na cidade estavam em polvorosa, afinal, era um espetáculo de um famoso e dito louco diretor.
   Os ingressos eram concorridos e Charles conseguiu um par de ingressos. Elizabeth ficou profundamente lisonjeada por ter sido "escolhida" por Charles para acompanhá-lo em tal evento. Porém, seu lado independente falou mais alto. E bem mais alto. Antes de Charles terminar suas palavras, "É a oitava maravilh--", recusou o convite e disse que se ela quisesse ir nesses eventos popularescos, ela iria por si só.
   Pela cabeça de Charles passou algo como "sutiãs queimados" e se despedindo, entrou no elevador.
   Todos disseram para Elizabeth sair naquela noite. Sem exceções. Amigas, conhecidos, sua família. Todos. Elizabeth enfezou-se e disse que não sairia. Ela era uma mulher muito teimosa.
   Por não ter nada melhor pra fazer, ela foi dormir mais cedo. Olhou para o relógio e pensou consigo "Nesse momento, deve estar começando o espetáculo e Charles deve estar com uma mulher qualquer, da vida". Entre seus pensamentos, Elizabeth adormeceu, rapidamente.
   Foi despertada minutos depois com um barulho que vinha da rua. Em seguida, uma mão gigante entrou pela sua janela e a agarrou, puxando-a rapidamente para fora, aos gritos.
   King Kong a olhou como se tentasse reconhecer a mulher por trás daqueles gritos desesperadamente assustados. Elizabeth se debatia na mão da criatura e por fim, King Kong viu que Elizabeth não era quem ele procurava.
   E então ele a soltou, lançando-a para a morte.

20050131

É hora.. É hora.. É hora-hora-hora!

No próximo dia 3 (três) é aniversário do pirata que aqui vos fala.

E para poupar cada um de vocês de quebrarem a cabeça, fiz uma pequena lista, em resposta ao grande sucesso de uma campanha semelhante de Natal na época do (falecido) KoRn Flakes.

Mas agora está ainda melhor!(!)

A lista contém produtos de todos os tipos, preços, marcas e variedades. Falando nos preços, tentei fazer algo fácil para todos os bolsos. Temos por exemplo um Balde de Champagne Preto 5,5 L ao risível preço de R$5,90 até um de meus sonhos de consumo, uma TV de LCD 42 Polegadas Dwide Ambilight PIP 42PF9996 Philips, por apenas R$27.000,00.

Temos também outros pequenos sonhos de consumo, mas a beleza da lista, definitivamente, são os livros, DVDs e CDs, que no fundo são o que realmente importa e onde vocês deveriam olhar com mais tenção.

Contudo, sem nunca esquecer da vedete de toda lista, uma bela Almofada Índio Branco com Bordado Preto, que dá todo um charme à todo o resto.

Concluindo, se eu fosse você, eu não deixaria de dar uma olhada e considerada em toda lista, mesmo que seja apenas como referência, porque muitos produtos não estão disponíveis. Sem contar na fantástica promoção.. enfim, corra já para (A LISTA)!


"Mal posso esperar para
ver a lista! Ui!"

20050106

A Carta

   Naquela manhã, ele encara o jornal, recém-comprado com cheirinho de gráfica ainda, ansioso, meio trêmulo. Um frio na barriga corta-lhe a mente.
   -Calma, Tomas - ele diz pra si mesmo - é só uma carta no jornal. Que foi publicada ou não.
   E se foi? E se lá estiver a carta dele? A opinião dele, exposta pra milhões de pessoas, quem sabe bilhões? Todos concordando plenamente com sua opinião e dizendo "puxa, esse cara é bom!". Mas e se não? Estaria Tomas condenado ao eterno ostracismo, a ser só mais um ninguém na multidão? Ou pior, a carta ter sido publicada, porém tão recortada e editada que suas palavras soem de maneira esdrúxula e deturpadas a ponto de não serem mais suas palavras, mas daquele editor nojento. No mínimo deve ser um estagiário, estágiário nojento, escroto de merda, logo vai dar pra notar que a presença dele naquela redação é totalmente dispensável e ele vai pro olho da rua, não antes de implorar por mais uma chance ao chefe, dar o cu pra ele e ainda ser demitido. Bem-feito. Na minha carta ninguém mexe.
    Tomas então, toma coragem e abre o jornal. Corre pra seção de cartas. Lá está ela, do jeito que ele a escreveu!
   

"Caros senhores,
venho por meio desta demonstrar
minha insatisfação perante estes
rapazotes que ocupam o tempo de
vocês reclamando sobre este ou
aquele assunto de não grande
relevância à sociedade em geral.

Grato,

Tomas Bernt."

   -Bom praquele estagiário. - diz, soltando uma densa fumaça de seu charuto.
   Em casa, Tomas gostava de fumar charutos de vez em quando, principalmente pela manhã. Na rua, só cigarros mesmo. Ele sempre soube que aquilo o mataria, cedo ou tarde. Mas ele queria sentir-se vivo. Fumou, bebeu e trepou. Ultimamente, mais fuma e bebe do que trepa. Isso é resultado da vulgaridade de sua vida sem significância. No fundo, Tomas sabe que é ordinário, como um figurante de um filme de ação. Enquanto os mocinhos vivem tendo ação, Tomas só está lá, ao fundo, não podendo olhar pra câmera, nem fazer nada fora do comum para não se sobressair demais, apenas lendo um jornal enquanto fuma um charuto mas ele prefere esquecer isso, prefere pensar que algum dia ele vai ser grande. Que ele vai ter o seu momento.
    Ele não sabe bem como isso vai acontecer, mas ele tem grandes talentos. Além de saber ler e escrever, ele sabe apreciar um bom charuto, por exemplo. Muitos dizem que Tomas é desajustado, meio retardado mesmo. Porém, tudo não passa de um pouco de psicose, disfunção de personalidade e mania de perseguição. E isso não o impedirá de, por exemplo, ser o maior Conhecedor e Apreciador de Charutos, que ainda sabe ler e escrever! Puxa, ele pode até ver as manchetes e reportagens, em revistas ao redor do mundo, em cada cidadela de merda. "Tomas Bernt Recomenda: Os Melhores Charutos da Estação - Matéria lida e escrita pelo próprio". Puxa, isso vai ser grande!

   Após cerca de uma semana a contar da data daquele jornal, hoje a edição mais importante de todos os jornais, pois continha seu nome, Tomas recebe uma carta, direto das mãos do carteiro com um cheirinho de perfume de mulher. Um frio na barriga se une ao pensamento do óbvio: É carta de mulher. Ou travesti. E se for de um travesti? Vai, algum travesti leu a sua carta e por alguma razão ficou interessado naquele garotão, bonitão, de opinião máscula e forte, escrita bonita e muito culta, de um humor sem igual, uma fina ironia jamais vista! E considerando os fatos, esse travesti deve ser o carteiro. Mas é lógico! O carteiro deve ter ficado esperando ali na vizinhança por Tomas sair no portão, para assim vir e entregar a carta em suas mãos. Agora provavelmente ele deve estar esperando em algum lugar escondido, observando Tomas cheirar aquela carta, provavelmente se masturbando e desejando aquela carne branca.
    -Que nojo.
   Mas e se for de uma mulher, uma mulher inteligente, culta, seios fartos e ninfomaníaca, um poço de sexo desesperada por aquele homem, porque ela ficou molhada apenas de ler sua carta enquanto participava de um ménage-à-trois naquela mesma manhã da publicação da carta. Entre um gozo e outro deve ter pegado papel e caneta, escrito a carta e a esfregado em suas genitálias, sedentas por Tomas. Mas o cheiro era de perfume e não de buceta. Tomas conclui que é melhor olhar o remetente.
   O nome era Mourato. Janete Mourato. Um bonito nome. Mas não parece o nome de uma ninfomaníaca. E que curioso, ela mora em São Paulo, tão próximo de sua cidade, São Caetano do Sul.
    De repente, ela é a mulher da sua vida. É, ela deve ser a mulher da sua vida! Ele lê a carta e sente uma vontade incontrolável de respondê-la. Só que ele no momento não tem papel, caneta ou sequer envelopes. Tranca sua casa e sai pela rua. Seus passos longos e rápidos, quase ritmados, lembram vagamente um trotar. Ele caminha por ruas abarrotadas de pessoas. E tem a clara certeza de estar sendo perseguido. Seu passo passa de ritmado para desesperado e ele sai caminhando apressado. A papelaria é coisa de oito quarteirões de sua casa, mas ele deveria ter pegado o carro. Pelo menos ninguém o perseguiria. Ninguém a pé. Só se viesse um carro. Um carro poderia persegui-lo, e ele teria de dirigir muito rápido, para assim despistá-lo. Assim como ele corre agora.
   Seus pensamentos correm mais rápido que seu corpo, no entanto, ele então chega à papelaria, entra, ofegante, e se mantém ao fundo da loja, misturado às pessoas, encarando a porta, esperando pelo perseguidor. Sua concentração é interrompida por um cutucão.
   -Em que posso ser útil?
   -..envelope. Papel. Caneta.
   -Pois não, senhor. O senhor parece que vai mandar uma carta. Quer selos?
    -Sim.. ã, por favor. - diz Tomas puxando o maço de cigarros do bolso direito de seu paletó. Segurando um cigarro nos lábios, leva o isqueiro à altura do rosto e antes que tenha chance de acendê-lo, é interrompido por outro cutucão, mais uma vez.
    -Senhor, é proibido fumar aqui.
   -Ah, desculpe, diz Tomas em um tom arrependido, guardando o isqueiro e amassando o cigarro com a mão esquerda. Estou tentando me livrar do vício.

   Até parece, pensa consigo, satisfeito.