O dia amanhece, preguiçosamente, como se não quisesse amanhecer. E Marília acorda, com o sol na sua cara, não querendo acordar mas era tarde demais. As cortinas estavam escancaradas e se ela fosse algum tipo de vampiro, ela não teria visto o sol nascer quadrado, certamente. Ela ainda encara o prédio, que decora a vista privilegiada de seu apartamento, recobrando o pensamento. O sono já fora perdido há tantos minutos. Esse sim um vampiro, maldito. Bendito.
Ela joga as pernas pra fora da cama e senta-se, tentando recuperar a energia perdida dos bruscos movimentos das pernas. Olha para a janela, olha pra sua mão esquerda. Corre os olhos para o despertador, ansioso, tic tac tic tac tic tac tic, ansioso pelo momento que iria acordá-la, oficialmente, dentro de uma hora. Olha a janela, novamente e segue o facho de luz até o chão, onde repousa um cravo, azul celeste, salpicado de manchas brancas. Marília encara a flor como quem encara uma ressaca. O que diabos aquela flor estava fazendo ali?
Ela abaixa-se e o pega, delicadamente, pelo caule, longicaule, espinhoso, não azul. Aproxima-o do rosto, amassado pelo travesseiro, e cheira a flor, como se aquilo fosse responder à questão dela. O cheiro era de cravos, se parecia com um cravo e bem, obviamente era um cravo. Azul. No quarto dela. Ela levanta-se e caminha até a janela.
Levanta a mão segurando o cravo pra tentar enxergar algo mais nele. E ao levantá-lo, contra o céu, Marília nota as cores delicadas nas pétalas perfeitas da flor. E era como se o cravo fosse a última peça de um quebra-cabeça pois ele parecia completar o céu. Parecia fazer parte dele, como se fosse invisível ou simplesmente uma gravura, ficcional. E não importava para onde ela o apontasse. Os ceús sempre se reverenciavam perante o cravo azul.
Fascinada pelo estranho fenômeno, Marília, aponta-o para o sol. E como mágica, o sol pareceu estar nas pétalas do cravo. A garota então, bruscamente, puxa o cravo para dentro. E o sol continuava nas pétalas azul-celeste da flor.
Assim sendo, o mundo viu-se coberto em escuridão, total escuridão.
O caos! O apocalipse! Nas ruas, tudo é desespero. Na televisão, as pessoas pedem por ajuda, dão entrevistas. Eu já sabia que isso ia acontecer, está na Bíblia, o sol iria se apagar. Debates calorosos sobre o assunto são propostos à todo momento. Sempre havia um outro espertinho, querendo ser espertinho até na merda do fim do mundo. É impossível o sol se apagar, ele explodiria e todos morreríamos, sem percebermos ou ele viraria um buraco negro e seríamos sugados, entrando em colapso, em seguida. E a taxa de mortos aumenta consideravelmente, suicidas e desesperados. Atos desesperados. Outros tantos se reúnem em igrejas, procuram por respostas na fé, na igreja; Por favor, deus, não deixe que o mundo acabe agora, eu tinha um encontro com a vizinha gostosa logo depois de amanhã e minha mulher nem desconfiava. Quebra essa, deus. Amém.
Marília, em seu ensolarado quarto, assiste tudo aquilo, da janela, com o cravo em mãos. A diversão já acabou, hora de colocar o mundo no lugar, ela diz.
Então, ela levanta o cravo para o alto, como antes. Mexe pra cá e mexe pra lá. Não parece funcionar. E não funcionaria mesmo, afinal, no cravo era dia. E o dia está no cravo. Rapidamente, Marília concordou:
Essa foi, de longe, a maior cagada que ela já fez.
E ela sente fome. Ela ainda era humana, depois de tudo. Começa a preparar um pão com manteiga na chapa, cheia de culpa. Ela podia ouvir as manchetes. "Garota rouba o sol e faz pão na chapa"; "Mulher diz que fez o pão na chapa 'porque estava faminta'"; "Marília, o monstro que roubou o sol, será julgada hoje"; "Enforcamento, tiro, gás ou esquartejamento? Vote na pena mais indicada para Marília e ganhe um Ford, zerinho!"; "Traidora da humanidade é executada após 13 dias de torturas e sodomia panssexual"; "'Corpo da garota seria atirado contra o sol, se ele ainda existisse', diz especialista". Merda, ela tava fodida. Ela tinha que sumir com aquilo. Já. Antes que descobrissem que ela tinha o sol naquele cravo.
Impaciente, anda de um lado pro outro, chacolhando a flor, praguejando.
Era o fim dela. Não tinha jeito.
Ela colocaria um fim à vida dela. Seria só mais um suicida pra aumentar ainda mais os recentes números.
Precisaria, pelo menos, acabar com a flor. Então abocanhou o cravo, com vontade, ferindo seus lábios nos espinhos e mastigando, com violência.
Sentiu vontade de chorar, sentia o sol escapando da flor, sentia seu coração batendo na nuca.
Marília não sente mais nada.
Caída em sua cama, encontrou uma escuridão ainda mais profunda e inevitável.
O despertador toca. Ecoa.
Marília acorda de sopetão, com o despertador gritando. Ofegante, viu ao redor seu apartamento, bagunçado e sujo, como antes. As janelas fechadas e o despertador ritmado. Ela sorri, desliga o alarme. Passando as mãos sobre os cabelos e levantando da cama, riu-se, aliviada. Num momento de reflexão e auto-crítica matinal, Marília diz pra si mesma frente à janela:
-Sua filha da puta.
Abrindo a janela, vê, novamente, a escuridão desesperadora do mundo. Olhando lá para baixo, apenas as poucas luzes artificiais de postes e carros batidos que iluminavam uma sociedade primitiva, em pânico. Marília, trêmula, olha para seu apartamento e vê, caído junto à cama, o cravo mordido, enegrecido, agora. Sente-se em colapso, sente a culpa e o remorso mais forte do que antes. Arregala os olhos e não tem tempo de sentir mais nada, sentindo-se desvanecer e ampliar-se, dolorosamente.
Em seguida, a vida tinha retornado à normalidade. À mediocridade. As pessoas choravam apaixonadas, a merda continuaria. Todos continuariam levando suas existências detestáveis ao seus próprios limites, como sempre foi.
Menos Marília.
Marília virou o sol.