20051104

Dolores.txt

   Rosa entrou em casa, visivelmente nervosa. Suas mãos, úmidas pelo suor, seguravam a bolsa junto ao corpo, cansado e dolorido, após um longo dia de trabalho.
   Ela encontrou o marido na cozinha, com uma lata de cerveja numa das mãos e um sorriso besta no rosto. Rosa olhou-o com desprezo, ódio. Seu rosto, antes sempre sereno, abrigava uma expressão amarga, cheia de repulsa. O marido a olhou, sem compreender o que acontecia e aproximou-se da esposa.
   A mulher nada conseguiu dizer; apenas largou a bolsa, olhando seu homem fixamente nos olhos para então virar-se e ir para seu quarto.
   Sentada à mesa, Dolores, a filha do casal, assistiu à cena, atônita. Viu o pai abaixar-se para recolher a bolsa e passou alguns minutos encarando o objeto, pensativo. Uma figura imóvel, solitária, no meio da cozinha. Para Dolores, aquilo durou horas e nada precisava ser dito, afinal, aquilo parecia ser mesmo inevitável. Sentiu medo.
   Durante a madrugada, ouviu os pais discutirem, novamente. Não era a primeira vez e Dolores tanto desejava quanto temia que fosse a última. A confusão, aquelas palavras feias, a voz chorosa enquanto firme da mãe. O som grave do pai, incisivo.
   A garota podia sentir a mágoa pulsando junto de seu coração. Uma mágoa adquirida daquele medo. A sensação de traição, destruição. Uma necessidade urgente de liberar-se, abraçar os pais e dizer, com sua voz, típica de uma garota de seis anos, Tudo vai ficar bem, acalmem-se. No entanto, não conseguia se mover. Não queria se mover; queria deixar aquelas sensações ruins para trás, Tudo ficará bem pela manhã, você só precisa dormir, Lolita, um pouco de sonhos e sono lhe fará bem, você verá. Queria rezar, mas não lembrava de nenhuma oração. Contentou-se em cantar uma canção, para si, um tanto melancólica. Tentar fazer os gritos desaparecerem e estar tudo normal, amanhã, de manhã. A dona Aranha subiu pela parece, veio a chuva forte e a derrubou; Rosa, cala essa boca, não vou aceitar isso, de maneira alguma; já passou a chuva, o sol já está saindo; não me manda calar a boca, você não tem saída e sabe disso; e a dona Aranha continua a.
   Pela manhã, tudo estava silencioso, novamente. Dolores levantou-se, com cuidado e desceu até a cozinha. O pai já tinha saído pra trabalhar. A mãe, de olhos vermelhos, encarava uma xícara de café como se fosse veneno. Nenhuma palavra foi dita quando a garota adentrou o recinto e nem mesmo quando sentou-se à mesa. Mesmo assim, Dolores seguiu seu ritual. Encheu um copo de suco de laranja, tomou-o lentamente, gole por gole, até esvaziá-lo por completo. Cortou um pão no meio, abriu-o, passou margarina, jogou achocolatado em pó. Enfiou no microondas. Trinta segundos.
   Tirou o pão e sentou-se novamente à mesa. Ao lado da mãe. Olhava fascinada o vapor sair do pão aberto, com o chocolate misturado à gordura, uma aparência repugnante e ainda suculenta. Dolores fechou delicadamente o pão e devorou-o da mesma maneira calma e cuidadosa que teve para com o suco. Mastigava cada pedaço, trinta, quarenta vezes, aproveitando a mistura de sabores até aquilo virar uma massa homogênea e insípida. Então engolia.
   Na terceira mordida, seu ritual foi interrompido, brevemente, pela voz áspera e direta da mãe, com cheiro de álcool e tristeza.
   -Seu pai não volta mais.
   A garota encarou a mãe, que voltara o olhar para a xícara de café e não sabia o que dizer. Quis gritar, tentar trazer o pai de volta, fazer a mãe feliz. Então engoliu. Mordeu outro pedaço do pão, dessa vez sem se concentrar, sem se divertir. Não conseguia mastigar com o cuidado e delicadeza usuais; não conseguia sentir mais esses prazeres nessas pequenas coisas; não mais. Não conseguia olhar para a mãe, tampouco para suas mãos. Se sentia suja, culpada. Sentia pena de si mesma, daquela mulher decadente à sua frente. Estendeu uma mão até alcançar a jarra de leite, despejando timidamente o líquido num copo limpo, de tom esverdeado.
   Seus movimentos eram constrangidos, ela não devia estar ali, ela não queria estar ali, se sentia uma estranha, uma indigente. Empurrou a cadeira devagar, fazendo-a ranger, sonorizando a cozinha até então silenciosa, como gemidos culpados e dolorosos.
   Cautelosamente, aproximou-se do microondas com o copo de leite na mão. Receosa, colocou o copo na bandeja do aparelho, tentando evitar qualquer cacofonia desnecessária. Contudo, o som do vidro fez-se ouvir, constrangendo ainda mais a garota.
   Ligou o aparelho e encarou os números arrastando-se no marcador digital. Não via mais sentido naquilo. Na vida. Tudo parecia suficientemente idiota e cretino, vazio de qualquer sentido mais profundo que não fosse o do olhar. Dolores sentiu-se idiota por não ter percebido isso antes. Era completamente óbvio! Os segundos no display corriam em ritmo de valsa. Dois pra lá, dois pra cá, infinitamente bailando. E sempre foi assim. Sempre será. E nessa dança, um pouco antes ou depois, as coisas se tornaram claras para ela. A vida ficou rasa frente aos seus olhos, ainda novatos e agora tão esclarecidos, assimilando rapidamente aquela valsa e conseqüentemente a vida.
   Foi aí, mais ou menos aí, que Dolores percebeu que a vida era monótona.