Clara já estava para sair de casa quando o telefone tocou. Após 2 chamadas e meia, ela atendeu.
-Alô?
-Alô, Clara! Como você vai?
-Tô levando. Quem é?
-Porra, sou eu, o Paulo!
-Ah, oi Paulo! E aí, meu?
-Tem programa pra hoje?
-O que você acha?
-Acho que agora você vai ter. Vamos ao cinema?
-Pois...?
-Pois tá passando Festim Diabólico no cinema novo. Aquele lá, o "cult", hahah, sabe?
-Sei.
-E aí, vamos?
-Não tô a fim.
-Vamos, vai! Cê precisa sair pra se divertir! Vamos?
-Tá, tá legal.
-Beleza! A gente se vê então na Avenida dos Mafagafos, em frente ao cinema, lá pelas duas!
-Tá legal.
-Clara..
-quê?
-Toma cuidado.
-..tá.
Desligando o telefone, ela dirigiu-se para o banheiro, onde tomou um banho demorado, refletindo sobre o sonho da noite anterior. Já era a terceira noite consecutiva que esse sonho a afligia. E apesar dos esforços, eles não pareciam querer parar. Cada noite parecia mais real. Cada vez, tudo soava mais próximo. Ela pouco se importou. Todo mundo morre um dia, mesmo.
Depois do banho, Clara vestiu um jeans desbotado, uma camiseta preta e seu coturno. Amarrou os cabelos curtos num pequeno rabo-de-cavalo e passou as mãos por sobre o rosto. Sentiu algo diferente e correu para olhar-se no espelho. Seu rosto estava como sempre, magro e expressivo. Seu olhar expressava um certo desapontamento.
-Essa merda já tá me deixando paranóica.
Instantes depois, já estava caminhando pela rua. Faltava ainda uma hora, mas ela queria chegar cedo. Um pouquinho ao menos.
Aquele dia estava nublado, mas bastante abafado. Ia chover a qualquer momento, Clara sentia em seus ossos. Mas não levou sequer um guarda-chuva- Eu não sou a bruxa do mágico de Oz pra derreter com água, então, que se foda- e levava apenas uma moedas no bolso e uns 20$ na carteira. O cinema era barato, isso era a menor das preocupações.
Clara tinha um passo apressado, naturalmente. Mesmo que ela não estivesse com pressa, era como se ela estivesse caminhando pra ir para o banco faltando cinco minutos para fechar. Pressa.
Ela associava isso à sua ansiedade crônica. Ela já teve as unhas todas roídas, mas hoje contenta-se em caminhar. Desde cedo sua mãe já dizia Clara, você é muito ansiosa, menina! mas Clara achava isso bom. E justamente por isso ela odeia gente molenga. Falta de propósito na vida, porra.
Enfim, chegou em frente ao cinema. Do outro lado da rua um prédio estava sendo construído. Clara sentou-se no banco e ficou admirando aquele futuro prêmio de concreto, que orgulhava tantas pessoas. Os molengas, no geral. Gente sem propósito na vida. Estúpidos.
Seus pensamentos são interrompidos por propostas, vinda daquela construção. Os pedreiros estavam em horário de almoço.
-E aí, boneca!
Clara ignorou.
-Ih, a boneca é metida.. eu sei do que uma boneca metida gosta..
Clara virou e olhou pro outro lado.
-Ah, bonequnha, cê deve ter uma bela rosca. Dá sua rosca pra mim!
Clara emputeceu-se. Ela gritou.
-E eu lá achei minha rosca no lixo pra dar pra vagabundo? Vai tomar no seu cu!
Os pedreiros riam. Menos o vagabundo, então constrangido, de sorriso amarelo no rosto.
E um ônibus passou a toda velocidade por detrás de Clara, na calçada. Desgovernado, chocou-se contra um prédio.
O estrondo metálico encheu o quarteirão.