20080221

Solidão

   O dia nasceu e eu só percebi isso uma ou duas horas depois quando o sono já não era mais tão pesado como a luz do dia, naquele momento. Acordar com o sol nos olhos é desagradável e isso só deixou meu tradicional mau humor matinal numa atitude ignorante que perduraria pelo resto da minha vida, provavelmente. Ou até a hora que eu pudesse tomar uma xícara de café, qualquer coisa. A solidão me machucava por dentro. Estava num estado de ânimo putrefante, sentia o odor imaginário de carne podre ao qual meu corpo sucumbia lentamente. Já estava sem ela por quase um mês. No entanto, o cheiro dela ainda estava na casa, em mim. No meu travesseiro. Deveria colocar a roupa de cama para lavar. Só não tinha certeza se o que eu queria era mesmo esquecer dela. Se eu queria continuar com tudo.
   Três passos depois já estava na cozinha. Esses apartamentos de hoje, supostamente econômicos, são gaiolas tão pequenas quanto sufocantes. Não podia arcar com os custos de um apartamento maior, embora desejasse ir pra qualquer outro lugar onde pudesse esticar as pernas sem encostar na outra parede. Ou chutar um móvel. Ou que o meu salário de fotógrafo pudesse pagar. Então, não podia ir para um lugar melhor. Se pudesse, não teria móveis para colocar lá dentro, mesmo. Não tinha muito. Minhas possessões não iam além de uma cama, um forno e geladeiras pré-guerra, um televisor e um videocassete, um cinzeiro, um aparelho telefônico antigo, uma vitrola com todos os vinis que eu queria ouvir e uma cadeira vermelha e bonita. Só o necessário, para mim.
   Naquela manhã tudo estava mais podre que o normal. O café não ajudou e o cheiro podre agora estava em todos os lugares, a parede exalava o odor como se aquele fosse o odor usual das paredes. Tudo tinha o mesmo cheiro desagradável. Um complô olfativo. Uma rebelião interna. Queria morrer. Ou que ela morresse. Numa repulsa ao fôlego auto-destrutivo, me vesti rapidamente, olhando ao redor, como se a paranóia fosse alguma solução e saí de casa, o mais rápido que podia. No corredor o cheiro já era diferente, era maçante e empoeirado, como um grande saguão de um hotel antigo ou um museu de história. Desci pelas escadas e fui para a rua, tomar café na padaria pois não dava pra fazê-lo em casa, de maneira alguma — Vomitaria o primeiro pedaço assim que começasse o segundo por culpa daquele cheiro nauseabundo de solidão e rancor.
   Na padaria, o odor também estava lá porém misturava-se tanto aos odores comuns de uma padaria e dos bêbados matinais que tudo parecia surpreendentemente familiar e acolhedor. Apesar do tédio que realmente me acolhia, diariamente. Tudo estava sem brilho e tudo me parecia desinteressante. Por isso, eventualmente, vagava pelas ruas, sem rumo algum. Para todos os aspectos, flanava. Porém, não tinha o menor interesse turístico ou qualquer outro interessante. Andava pois ocupava-me o suficiente para não precisar pensar.
   Os dias passavam assim, estranhos, malditos. Não passavam, não aconteciam, tudo parecia suspenso. Ou não parecia simplesmente. Uma inexistência substancial e concreta, capaz de calar as mais desinibidas figuras de linguagem. Nada acontecia e eu não queria que acontecesse algo pois o nada por si já era um acontecimento.
   Outro dia tropecei em uma pilha de fotografias de alguns trabalhos meus. Gosto do que faço porque com a luz eu escrevo palavras diferentes dessas aqui. Palavras difíceis de pronunciar e falar, como uma língua subjetiva com suas palavras subjetivas, que se desdobra em centenas de outras palavras objetivas para uns ou em meia dúzia para outros. Depende desse dicionário pessoal. De volta ao tropeçar, foi um pouco engraçado. Dizendo tanto sobre determinados momentos passados e registrados as fotos zombavam daquele momento presente como uma justaposição de um antes-e-depois de um comercial de emagrecimento.
   Engraçado porque é de algo que ninguém compraria se pudesse ver os resultados.
   Definitivamente estou mais magro, sinto as maçãs do rosto protuberantes. A minha barba mal cuidada enrosca-se em meio aos cobertores e não há um porquê de fazê-la já que não vejo um porquê de ver outras pessoas que possam contemplá-la assim. Os porquês e por ques são luzes fracas e animadas, impossíveis de focalizar. As paredes estão amareladas por causa do cigarro e as cortinas perderam seu ar feliz e etéreo como se estivessem em protesto desde que ela foi embora. Não mais dançam alegremente a cada rajada de ar que chega pela janela. Não as culpo. Não há mais música desde então.
   A luz nunca parece estar satisfatória por aqui, está sempre um pouco mais escuro do que deveria. Ou não abro mais tanto os olhos devido a essa rotina putrefante que me fez aprender a não pensar em meio ao viver. Ou seja lá o que for isto. Só abro mais os olhos quando vou organizar os envelopes trazidos pelo correio. Naquele dia, entre contas e impressos, uma carta dela. Sua caligrafia delicada compunha as letras de seu nome, remetente. Do outro lado, o meu nome e meu endereço.
   Fiquei sentado olhando o envelope bonito e ainda fechado.
   Passei o dedo pelos vincos do envelope, senti o papel como se procurasse uma resposta em braile. Minutos depois, respirei fundo e abri o envelope, puxando e desdobrando a carta em seguida.
   Li atentamente em absoluto silêncio.
   Então, me levantei e
   finalmente
   coloquei a roupa de cama para
   lavar.