20080212

RESENHA: "O Segredo de Brokeback Mountain"

(Nota: Essa resenha foi redigida e entregue no dia 23/02/2006 para a disciplina de História da Arte, no primeiro semestre do curso de Mídias Digitais da Universidade Metodista de São Paulo. Como estou no meu antigo computador pelo menos até que o Principito esteja de volta pra casa. Encontrei esse texto entre os arquivos que só tenho nessa máquina. Boa leitura!)

   O Segredo de Brokeback Mountain é o (já) lendário filme dos caubóis gays. Polêmicas, desconforto, uma reação tão previsível quanto impressionante. Uma amiga minha que me acompanhou no cinema se contorcia durante a sessão nos momentos mais hardcore do filme (Por mais softcore que seja, apesar de não ser um pornô. Lógico) e sei que ela tem amigos homossexuais. Porém, ela sente-se desconfortável e visivelmente incomodada com a relação entre dois homens. “Imagina aquilo entrando”, disse. Particularmente, tais cenas não me incomodam. São demonstrações de sexo, como qualquer outra, heterossexual, homossexual entre mulheres, etc. Não tão etc, claro. Zoofilia, necrofilia e toda essa pansexualidade no sentido amplo de que tudo é sexo (Ou “fornicável”) me incomoda um bocado.
   Porém, o filme apresenta essa relação entre os dois homens de uma maneira muito tranqüila. Poética, até. No entanto, o excesso de melodrama acaba anestesiando demais alguns temas queridos ao filme, em minha opinião, permitindo ao espectador comum apenas a visão do romance entre os dois homens. Algo semelhante no dramalhão Titanic, que faz uso de ótimas tecnologias e um romance — também — “impossível” mas parece banalizar toda a tragédia em si. O que dá uma certa vantagem à Brokeback Mountain por não situar o filme dentro de nenhum acontecimento histórico assim tão relevante.
   Situando o filme, inicialmente, em 1963, Ang Lee usa de uma montagem “lenta”, valorizando muito a montanha do título e depois, com a tensão crescente do filme, as cenas tornam-se mais curtas, gradativamente, o que sim, é uma fórmula. Contudo, entendo o valor dessas imagens como foram apresentadas. O início valoriza a condição dos homens rústicos em contato com a natureza. Sendo esses homens tão rústicos, tais quais os rústicos caubóis do século XIX e, em função da natureza bucólica destes — independente do século em que se encontram — montagens paralelas constantes, cortes da geração MTV e a valorização do plástico não têm razão aqui e para tanto, o filme tem uma carreira de premiações e elogios de, em sua maioria, críticos e pessoas mais velhas, mas arrisca-se em desagradar a mesma geração dos cortes rápidos e videoclipes modernos, uma valorização da velocidade da edição sobre o conteúdo, o que é uma pena. Há uma vivacidade tão grande em contraste à essa aparente monotonia que os personagens não poderiam viver num mundo mais real.    Posteriormente, o filme projeta-se focando menos na natureza e mais nos personagens, não coincidentemente quando a ligação entre Ennis e Jack torna-se mais forte. O que é, até um certo ponto, cliché em termos de imagem cinematográfica para dar uma visão mais intimista dos personagens para o espectador, mas utilizando-se ainda de uma leveza na câmera pouco ordinária, sendo completada pela fotografia eficiente e pouco chamativa (por isso mesmo genial, já que adequou-se tão bem ao filme em si) e as ótimas atuações de todas personagens, fossem principais ou coadjuvantes.
   O período do filme também “coincide” com o período da revolução musical e sexual. Andy Warhol com sua Factory, nos anos 60 gerenciava o Velvet Underground e em oposição ao que é apresentado na película, uma valorização máxima ao plástico. Em 1963, os Beatles colocava Please Please Me em primeiro lugar nas paradas britânicas, onde essa “revolução” musical mostrou-se pioneira e depois copiado pela América. Na América do Norte, a música country e folk, no começo dos 60 era o grande evento, assim como Elvis e toda a Motown em si. E essa música country como a de Johnny Cash (Que, vale o trocadilho, como disse Bono Vox “Todo homem é um maricas se comparado a Johnny Cash”) é apresentada no filme porque ela era (e ainda é, imagino) popular no interior do país. O plástico adorado por Andy Warhol, assumidamente homossexual, e seus seguidores, como Lou Reed, que como o próprio diz no livro Mate-me, Por favor, de Legs McNeil e Gillian McCain, “Sou um chupador de pau, meu bem” exibe uma naturalidade na aceitação pessoal com o assunto (Apesar de não ser tão amplamente aceita pela sociedade em geral) que é típica de uma cidade grande, como a Nova York de Warhol e Reed. No filme, há uma dificuldade de aceitação à própria sexualidade. Na negação, no tradicionalismo — fato representado pelos personagens casarem-se e terem filhos, como qualquer homem heterossexual faria — e mesmo na violenta reação da sociedade que exclui e/ou assassina uma pessoa por ignorância (Talvez uma herança da igreja e suas leis incoerentes). De qualquer forma, o filme rústico assemelha-se à homossexualidade mais livre, retratada nesse trecho do livro, mas vai além. No livro, Billy Name complementa o comentário de Reed dizendo “Então Lou Reed sentava na minha cara enquanto eu me masturbava. Era como fumar casca de milho atrás do celeiro, coisa de garotos. Não havia paixão ou romance envolvidos. Era só uma questão de aliviar as bolas naquele momento, porque sair com garotas ainda tinha a ver com ficar envolvido e toda aquela merda. Com caras era mais fácil”. No filme, o “aliviar as bolas naquele momento” transformou-se em paixão. Os homens apaixonam-se.
   Em 1962, John Ford lançou O Homem que Matou o Facínora. Como em outros filmes do gênero, homens enfrentam, com pioneirismo, o oeste “selvagem” e, geralmente, dominando-o. Tal qual esse pioneirismo rústico retratado nesses filmes, o filme de Lee exibe uma espécie de pioneirismo sexual. Tanto na (quase) inovação cinematográfica, que de certa forma bloqueia a homossexualidade entre homens quanto entre tais personagens. Eles não enfrentam índios e suas terras desconhecidas, não têm bandidos canastrões ou donzelas em perigo. O desconhecido aqui era o limite de seus desejos. O limite sexual em si. E assim sendo, o filme exibe tal pioneirismo com êxito e, por essa ótica podemos afirmar que é um filme de caubóis, como os outros. A mudança (ou atualização) temporal é parte chave para o desenrolar do tema.
   Ennis também é um caubói, como os outros. Porém, sem os temas típicos de um faroeste, ele é algo passado. E com medo de ser esquecido. Semelhante ao medo de Holden Caulfied em O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, frente à iniciação da vida adulta e o desapego da inocência, sozinho e perseguindo fantasmas de um passado infantil e feliz, Ennis vê-se nas sombras de uma vida que sequer viveu e agora encontra-se apaixonado por alguém do mesmo sexo, distante de seus familiares e amigos, perseguindo os fantasmas do amor por Jack. Para isso, teria de lidar e transpor o próprio preconceito, moralidade e medo da violência, que presenciou quando garoto, e trazer esse amor para o “mundo real”. Apesar de ter deixado a família e amigos, sua crise interna o permite assumir o romance enquanto na Montanha, somente, como um mundo dos sonhos, o lugar idealizado para ele ser quem é livre de qualquer moralismo. E mesmo depois da morte de Jack, fruto dessa dificuldade social — reforçado pela mentira da ex-esposa dele, que referiu-se à morte como algo de trabalho e não como comoção popular contra um homossexual — quando Ennis parece finalmente aceitar, ele ainda apega-se à montanha. No entanto, num ato simbólico. Como casais que cravam corações em árvores, Ennis tinha aquele lugar de seus sonhos como símbolo do amor entre os dois.
   Além do excessivo melodrama, outro aspecto controverso do filme é a suposta crítica política ao governo Bush e derivados. Seja porque Bush é texano, então caubói, e os caubóis do filme são gays ou um arranhão ao conservadorismo norte-americano (que ainda existe), além de como a revista Bravo! coloca “um caubói perdido e agonizante sem arma e sem vilões a combater, representando o tempo que já passou”, que numa breve analogia, podemos dizer que seria o Bush fazendo suas guerras contra o “terrorismo” porque Bush-pai já tentara fazê-lo anteriormente e foi mal-sucedido e além disso, numa época em que se fala tanto em paz e tolerância entre os povos, ele ataca outros países com motivos dúbios e etc. Mas vale ressaltar que tais crítica podem (ou não) existir. A leitura é possível, definitivamente. No entanto, é um tanto subjetiva e completamente temporal. Em 50 anos, ou até menos, provavelmente, essa leitura política do filme dificilmente será lembrada pois é algo que pede o imediatismo e o “vivenciamento” de tais fatos.
   Podem sim associá-lo com a situação político, social ou cultural da época então presente, digamos que por volta de 2056. Mas se alguém realmente considerar que em 2056 haverá tamanha intolerância entre os povos, guerras político-sentimentais, preconceito e ignorância pelo mundo, alguém, provavelmente, não foi abraçado pelo pai na infância.
20060223