20080127

Jeová não mora mais aqui

Devem ter aberto uma igreja nova aqui nas redondezas porque não é possível. Ontem, pela manhã, dois senhores batem à porta. Um silêncio mortal caiu sobre a casa. Minha mãe olhou rapidamente por uma fresta da janela e viu que eram testemunhas de Jeová. Ela tomou um café, folheou o jornal e deu mais uma olhada. Eles ainda estavam plantados no portão. Ela saiu para o quintal com tom de poucos amigos. "Pois não?" e eles perguntam "Bom dia, podemos falar com a senhora por uns minutinhos para--" "Não, não podem não", ela já falou de uma vez. Eu não vi a expressão deles porém ela disse que eles ficaram meio sem reação e tudo, agradeceram e foram embora.

À tarde, mais no final da tarde, a campainha toca. Eu fui atender sem olhar quem era. Incrivelmente era um outro maldito testemunha de Jeová, dessa vez um bem jovem. Entre as coisas que passam pela sua cabeça quando você recebe dois testemunhas de Jeová no mesmo dia, acho que posso citar "Castigo divino", "Preciso achar um exorcista", "Cadê esse Deus que eles tanto falam?", "Se eu atender mais dois testemunhas de Jeová eu ganho uma Bíblia de brinde?" e "Jeová. Je-O-Vá. Je. Oooo. Váááá. Nome gozado". Porém, só disse um Boa Tarde. Achei engraçado porque o rapaz era realmente jovem. Por um momento pensei em perguntá-lo quantos anos ele tinha mas então considerei que eu mesmo só tenho vinte e se eu o perguntasse quantos anos ele tinha, afinal, soaria como se eu fosse uma dessas pessoas velhas que ao ouvir que a outra pessoa é muito mais jovem erguem as sombrancelhas e suspiram com arrogância como se dissessem, com um tom falsamente condescente "Ah, meu jovem. Eu já passei dessa fase" como se a velhice fosse o ponto máximo de alguma sabedoria tão mística e inacessível para outras pessoas de mais tenra idade. Mas estimo que o rapaz tinha aproximadamente a minha idade ou no máximo dois, três anos mais novo. Outra coisa que denunciava sua inexperiência na arte de catequizar índios, digo, espalhar a palavra de Jeová era que ele era um pouco tímido. Gaguejava um bocado e não agüentava me olhar nos olhos por muito, ficando sem palavras e olhando para o lado para reencontrá-las.
Ele me mostra umas perguntas num livro que achei que fosse uma Bíblia mas não, eram aqueles panfletos que mostram pessoas no paraíso, comendo de uma mesa farta enquanto leões e avestruzes, cachorros e crianças correm e brincam por um lindo campo verdejante. Eram centenas desses panfletos, encadernados. Mostra aquelas questões do tipo "por que estamos aqui?" ou "existe vida após a morte?". Me pergunta se eu já tive alguma dessas dúvidas (eu sou um ironista da pior espécie, meu cérebro deve ter uma parte especial para ironia e afins porque junto do raciocínio lógico, automaticamente, há algum comentário inadequado. É bárbaro! Só que aí eu pensei em como é desgradável questionar as pessoas pela sua fé e tudo ou mesmo ridicularizar algo que a pessoa realmente acredita. Decidi me segurar) e eu respondi que já sim, claro.
Ele me pergunta qual delas eu gostaria de saber a resposta. Olhei bem no fundo dos olhos dele porque achei isso meio presunçoso e voltei os olhos para aquelas perguntas de 20 reais. Achei tudo meio bobo naquele momento e disse "Agora, assim, não me interessa nenhuma delas. Essas são aquelas questões que surgem porque estamos aflitos ou coisa que o valha. Agora, não estou aflito" o que era uma mentira. Tinha todo o drama do porta-fólio em cima da minha cabeça mas juro que entre as questões não estava "Não consegui imprimir meu porta-fólio. Estou condenado a queimar no inferno?". Ele me olhou e disse "E o que acontece com seus entes queridos, familiares e amigos depois que eles morrem, você sabe?" e eu disse "Eles morrem, ué. Finito." e aí ele gaguejou um pouco, espremeu algumas sílabas confusas e em resumo, não era bem aquilo que ele tava falando. "Ah. Você tá falando do negócio de vida após a morte?", perguntei, e ele falou que era. Então ele começou a contar uma história fantástica sobre todo mundo que morreu ser julgado e então os bons voltarão para viver uma eternidade feliz e os maus serão eternamente castigados ou mortos logo de cara ou algo assim. Para interagir, ele me pergunta "não seria ótimo se algum parente seu que morreu voltasse à vida e viesse ao seu encontro novamente?". Pensei em quem eu conheci que já morreu e há quanto tempo isso aconteceu. "Depende do estado de putrefação", respondi.
Não resisti. Pensei em seguida Se eles são as testemunhas, eu sou o promotor! e sorri por dentro. E o que se seguiu foi uma porção de levantamentos tão fantásticos quanto o outro e a cada vez ele citava um trecho da Bíblia, versículo e tudo, abria no tal trecho e me apontava com as mãos trêmulas enquanto lia, devorando vírgulas e fazendo tom de profecia a cada ponto final. Pensei em perguntar sobre isso também, como eles conseguiam saber os trechos mais convenientes da Bíblia na ponta da língua sendo que eu só consigo manter memorizado um CEP e se eu leio outro preciso me concentrar pra trazer o meu de volta. Mas não tinha essa questão no começo. Depois que ele falou que Deus colocou Jesus em Maria, ainda virgem, ele colocou um manto, invólucro ou coisa assim ao redor de Jesus na barriga da Maria para Jesus não entrar em contato com a imperfeição de Maria. Sensacional! Falou um pouco mais de como o homem é imperfeito e tudo e eu perguntei se a Bíblia foi escrita por homens, portanto seres imperfeitos, por que diabos ele se baseava nela tão firmemente, porque no final das contas eles falam da palavra de Deus mas passou por esse filtro imperfeito. Obviamente ele tinha um trecho para apontar. Um trecho em que um cara escreveu "E todas as palavras aqui escritas não foram alteradas pela percepção do homem, não há nenhuma interpretação se não as palavras de Deus" ou algo assim. Acho que isso figurou entre as justificativas mais pífias de todos os tempos. Conveniência total.
Eu o disse que isso era conveniente, que eu mesmo poderia escrever absolutamente qualquer coisa e então falar que não fui eu, que Deus quem escreveu e eu só servi de caneta. É como aquele filme ruim que passa à noite na TV que se justifica dizendo que foi baseado em fatos reais. Eu o falei que, honestamente, a Bíblia fala de coisas coerentes e coisas incoerentes porém ela não era, em absoluto, prova de alguma coisa porque a fé não depende de provas, ou você acredita ou não. A fé não é concreta mas uma Bíblia é e é irreal que algo tão vasto e inexplicável como a fé tenha como prova um livro velho e extensamente traduzido e modificado ao longo dos tempos. Citei que há traduções ou mesmo edições originais de livros publicados há um século que foram tão adaptados ou reeditados que pouco a pouco as palavras se perdem e orações ganham outro sentido.
Ele me olhou por um instante. Parecia um pouco sem palavras. Pensei que tinha vencido. Então ele conta sua experiência pessoal, que ele também pensava assim quando ele via a mãe estudando a Bíblia e que hoje em dia a compreende e compreende melhor a Bíblia, não pensando mais assim. Ele fez o mesmo tom falsamente condescente que eu citei que me ocorreu quando vi que ele era tão ou mais jovem do que eu. Mas no caso, o tom era menos "ah, meu jovem" e mais "Ah, meu caro. Eu também já fui um infiel nojento sem nenhuma crença". Primeiro fiquei puto, claro. Depois achei engraçado porque ele falou que a Bíblia é verdade porque ela contém profecias escritas há tantos anos e que estão se realizando agora, claro, apontando um outro trecho, versículos x e y. O trecho era aquele de que nação se levantará contra nação e etc. Diante da minha cara incrédula, ele já se corrigiu falando que não é de hoje que o homem entra em guerra, "Porque esse trecho fala de guerra entre nações diferentes, nações contra nações", ele tenta me explicar porém, o negócio daquilo ali era que a Bíblia já tinha dito que seria assim. E puxando outro trecho que dizia algo como "No final dos tempos, o homem amará mais a si mesmo do que a Deus ou aos outros. Será infiel, desleal, ambicioso e tudo o mais. Passará fome, causará a morte e isso levará a sua destruição" - Note que eu não lembro com exatidão do trecho, só o sentido geral.
Ele me questiona em um tom convencido se não era verdade que hoje em dia muita gente passa fome e tudo.
Citei que no século XIV, a população mundial conhecida até o momento era tão vasta e tão populosa que muita gente passava fome e havia um racionamento constante de alimentos. E as pessoas brigavam por isso. Então, em 1347 quando houve a epidemia da Peste Negra, em apenas três anos a população foi derrubada em 50%, para cerca de 22 milhões de pessoas. No período, houve conflitos inúmeros para achar um culpado pela causa de tantas mortes. Quando a epidemia acabou, e a população sobrevivente e saudável consideravelmente mais magra, houve fartura e de repente quem trabalhava no campo tinha se tornado dono de terras e os donos de terras, dito nobres, não tinham quem trabalhasse para eles o que os obrigou a ter de produzir seus próprios alimentos. Como não tinham muita prática, preferiram pagar à "polícia" do tempo para que invadisse e saqueasse quem produzia alimentos e etc. Os policiais então desenvolviam novas técnicas de persuasão, inclusive o escalpo, ou seja, novos conflitos. Primeiro conflitos pela escassez, depois conflito pelo doença, depois conflito pela fartura - eu só sabia disso tudo porque na noite anterior eu tinha assistido a um ótimo programa do History Channel chamado "A Peste" que falava desse período todo.
Ele falou algo como "entendo seu ponto de vista" da mesma maneira que um atendente de telemarketing sempre o entende de forma a manter um tom pacífico na conversa. Eu falei, que sim, o era - comecei a sentir aquele sentimento mais questionador tomar conta sem perceber - porém de acordo com o tal trecho, aquele monte de desgraça se daria no final dos tempos. Então quer dizer que o homem sempre esteve no final dos tempos, não fazia muito sentido dizer que o final dos tempos é agora porque conflitos de todos os tipos sempre foram parte da história do ser humano e eu tinha acabado de citar um exemplo perfeitamente concreto do que, naquela época também se falava de final dos tempos.
Nisso, o telefone daqui de casa tocou. É uma técnica antiga, aqui. Quando algum de nós é pego por um Testemunha de Jeová, quem está a salvo dentro de casa liga do celular para o telefone fixo, fazendo-o tocar e te dando o álibi perfeito e socialmente adequado para se retirar.
Eu fiz menção de que precisava entrar para atender ao telefone e ele disse "Mas você tem que concordar que hoje em dia os conflitos e guerras e problemas do homem são muito maiores do que aquele época, não são?" e eu disse "Não sei dizer, eu não vivi aquela época, eu não tenho nenhum parâmetro para comparar. Agora, com licença, que eu realmente preciso atender o telefone".
Ele perguntou meu nome. Eu respondi. Ele então me perguntou se ele poderia voltar semana que vem para conversarmos mais. Eu perguntei o nome dele. Ele respondeu. Eu falei "Não sei se vou estar em casa semana que vem mas pode vir".
Semana que vem não atendo à campainha sem olhar por uma fresta.

O que nos traz ao dia de hoje, domingo. Hoje, agora pela manhã, a campainha tocou novamente. Eu olhei. Duas senhoras e uma moça caracterizadas a caráter e armadas com suas bíblias e livretos. De novo. Terceira vez no mesmo final de semana. E vi que muitos outros testemunhas de Jeová estavam pela rua. Minha rua é sem saída, ou seja, com certeza eles acamparam na única extremidade de fuga. Não baseio isso em fatos. Se fato fosse, eu teria que ter saído na rua para ver e provavelmente eu não estaria aqui escrevendo isso. Em dois dias escreveria sobre versículos inúmeros e em uma semana, o nome do blogue mudaria de O Pinball Mutante para O Bingo de Prendas. Ou Críquete de Jeová. Não sei bem ainda.

No momento, fica assim mesmo.

Eles têm seus versículos na ponta da língua e eu tenho minha própria crença que cito da mesma maneira.
E assim O Pinball Mutante continua.