20130529

Por três estações

        Noite fria em São Paulo, tenho os pés molhados da chuva. Subi no vagão e me coloquei de pé junto aos bancos ocupados. Na próxima estação, você subiu e se colocou ao meu lado. Mas antes eu vi você e você me viu. Desviamos o olhar, e um segundo depois encontramos de novo com um leve sorriso para novamente desviar. E ali estava você, ao meu lado, procurando o celular.

        Te olhava de lado, meio engraçado, tentando não parecer esquisito. Ajeitei os ombros, corrigi a postura, não sabia como que estava o meu cabelo mas por via das dúvidas, achei melhor deixar como estava. O seu, preso num coque meio desmontado me deixou estranhamente feliz. Parecia gente, sabe? Bonito.

        Você tirou o cachecol, mostrando seu pescoço e tentei me lembrar se esse era um daqueles casos em que o corpo fala, como eu vi na TV uma vez. Seria interesse mútuo? Seria um sinal de abertura? Seria calor? Deixo isso pra lá, em dúvida.

        No reflexo da janela, encontro seu olhar novamente. Penso em falar mas minha estação é a próxima. Chegando, logo ali. Fico aflito, nos conhecemos só há duas estações. Você poderia descer junto, então eu falaria contigo, com certeza. Não parece o caso. Vou falar algo. Vou dizer qualquer coisa. Oi. Olá. Não, espera, estranho demais. Deixa pra próxima. Abre-se a porta.

        Um, dois, três, quatro, cinco e seis passos. Largos, confiantes, olha só pra mim, que belo caminhar, ombro, postura, ritmo. Nos vemos em uma próxima e perpetuaremos nossa paixonite em silêncio, para enfim romper em reencontro qualquer, sem pressa, só sendo. Casualmente paro junto à escada rolante e olho pra trás, como em um filme, uma última cruzada de olhar nessa noite.

        E você está olhando pro celular, deus sabe há quanto tempo, mas me parece bem concentrada. Não era mútuo, pressuponho.

        Desço as escadas correndo, meu coração se parte um tantico só, dessa casualidade tão empolgante e tão ridiculamente inerte de nós. 
Ou de mim.

Mas daí que rolei a catraca e passou.

        Tudo, ou quase tudo. Você não foi a primeira nem será a última. Provavelmente a expectativa jamais conseguisse acompanhar a realidade. Talvez em uma próxima eu não me perca em devaneios e de fato diga algo. Talvez tenha sido melhor assim. 

        Mas foi bonito de ver. Por três estações ali, parecia real, sabe?

20120213

Outono

     Seus pais, meio hippies, meio sonhadores se conheceram em uma exposição ao ar livre em um parque da cidade. Do momento deste encontro até duas semanas depois, naqueles meados dos anos 80, passaram dias e noites e vidas juntos. Conheciam-se e se amavam cada dia mais. Exatamente ao fim dessas duas semanas se separaram por alguns dias para entender o que deveriam fazer já que ela estava grávida.
     Uma semana dali, resolveram morar e criar a criança juntos.
     A gestação fora gentil mesmo sob o rigoroso verão em que ela ostentava tamanho ventre. Não ganhara tanto peso, era uma dessas grávidas com uma composição esguia e pernas finas, à exceção da barriga que crescia tornando-a um pouco desengonçada até, mas muito bonita em toda essa estranheza.
     Ele trabalhava até as cinco da tarde em um escritório na cidade, motivo pelo qual os amigos o chamavam de "yuppie" em provocação às camisas engomadas, gravatas apertadas e sapatos engraxados que ele subitamente teve de adotar em sua rotina. Comprou um carro e passava as horas no escritório pensando na sua família, e assim sempre chegava ao final da tarde sorrindo, quando ia para casa. Em um desses dias de volta do escritório, abriu a porta e viu um copo de água caído no chão e sua mulher respirando rápido e pesado enquanto secava o suor com lenços retirados de uma caixa de Kleenex ao seu lado. Os poucos instantes que ele levou entre abrir a porta e entender o que aconteceu foram seguidos por uma injeção de adrenalina de um casal tão jovem e inexperiente correndo para o hospital mais próximo.
     Nascida no primeiro dia de outono, a menina assim fora chamada pelos pais: Outono. Nome esse que, no escritório, tornara-se algo de uma piada entre seus colegas, já que ele era o único yuppie de alma livre que eles conheciam.
     E assim, Outono crescia. Não que seus pais fossem perfeitos, mas definitivamente era um lar amoroso e uma família feliz.
     Mas mesmo após os vinte e poucos, Outono, talvez por influência de seu nome, talvez por coincidência de caráter, é um pouco melancólica em seus atos. Não triste realmente, apenas nunca muito ensolarada, tal qual uma tarde de outono em que as folhas caem e são carregadas pelo vento frio que anuncia o inverno que se aproxima.
     Na iminência deste inverno, Outono vive. Tem prazeres em pequenas coisas e é uma leitora ávida por novidades. Seus pais, filhos de Gaia assumidos, introduziram à Outono a vida e suas repercussões sob a ótica da Mãe Terra. Outono, por sua vez, buscou no Budismo, no catolicismo ortodoxo e no Hinduísmo as suas respostas e direções. Tamanha mistura de influências permitiu à garota desenvolver uma visão de mundo que remete ao espírito livre que seus pais sempre buscaram. À sua maneira, Outono seguiu os ideais de seus pais. Sua alma alinhada à sua cabeça e, principalmente, ao seu coração.
     Tem amores incondicionais e ama as pessoas por tão pouco, quase nada. Pequenos gestos, sorrisos e direções eram suficientes para trazer um frescor aos anseios de Outono, mas a garota parecia não encontrar luz própria, por isso sentia-se refrescar com a luz dos outros. Apesar de inofensiva, essa melancolia conseguia exercer um certo efeito em sua personalidade.
     Essa espécie de desgosto pela vida, como se não houvesse ladeira acima, funcionava como um corrimão, sempre ali, apoiando-a, não a permitindo mudar.
     Certo dia, almoçava em um restaurante. Lia um livro indicado por uma colega, o qual estava detestando. Foi quando ouviu um ruído.
     "Pssiu."
     Levantou os olhos do livro e viu um rapaz esbelto, de rosto muito jovem e olhos atrevidos a encarando, com seu prato ainda intocado nas mãos que ao conseguir sua atenção, prosseguiu:
     – Você não deveria comer sozinha. É muito deprimente. – disse, puxando uma cadeira e se sentando à mesa de Outono.
     Ela ficou observando o rapaz pegar um guardanapo de papel e colocar sobre suas pernas, com todo o cuidado. – Posso me sentar aqui? – ele concluiu, inclinando-se e colocando o cotovelo na mesa, apoiando a cabeça na base recém-formada. – Prometo que sou boa companhia, no duro!
     Instigada pela atitude do rapaz e como estava realmente irritada com aquele livro sem graça, consentiu brevemente com a cabeça, enquanto recolhia o livro (idiota) em sua bolsa, dizendo:
     – Você não tem modos?
     O rapaz estancou. Ela continuou.
     – Esse guardanapo. – apontou desinteressada com o indicador – É de papel. Só se coloca no colo quando o guardanado é de pano. Quando é de papel, deixa-se sobre a mesa mesmo.
     Incomodado, ele olhou para o guardanapo e novamente para ela. Sorriu maliciosamente.
     – Agora entendi porque você está almoçando sozinha. – encarou Outono por alguns segundos e começou a manobrar os talheres em seu prato.
     Outono ficou um pouco indignada, mas retomou seu prato de onde deixara uma leitura atrás.
     Comeram em silêncio por alguns minutos.
     – Escuta, qual é seu nome? – ele perguntou, de sopetão.
     – Outono. – ela respondeu, sem levantar os olhos.
     Ele levantou o rosto. Espremeu os olhos encarando-a procurando o menor traço que a entregaria naquela mentira. "Quem se chama Outono?" pensou. Mas ela não esboçou nenhum sorriso, nenhuma olhadela para ver a cara dele diante dessa resposta inusitada.
     Outono estava realmente acostumada. Dizia que não gostava nem desgostava do nome, era o seu nome e pronto. Ficava especialmente entediada quando alguém confirmava sua identidade, como se todo mundo mentisse para estranhos.
     O rapaz, após desistir de ter uma resposta humorada, limpou a garganta e disse:
     – Eu me chamo Tenório. Prazer.
     Ela olhou pra ele. – O prazer é meu. – respondeu.
     Continuaram almoçando em silêncio. Tenório terminara seu prato e se apoiava outra vez com os cotovelos na mesa, olhando para Outono.
     Ela rolava uma batata para lá e para cá no prato há alguns minutos já. Seu ar desinteressado parecia tipo, coisa de garota bonita que se faz de entediada. Mas Outono sentia-se envelhecer e desprender a todo instante. Vítima consciente de seu próprio nome, algoz involuntário de seu próprio eu.
     – Estou te incomodando? – Ele perguntou, alcançando um palito de dentes sobre a mesa e palitando-os com alguma descrição (mas não o bastante), se recostou à cadeira.
     – Não, imagine. Desculpe. Me diz, o que você faz da vida?
     Então Tenório falou um pouco mais.
     – Estudo biologia, nasci e cresci por aqui, sou solteiro e não sei o que mais. Só isso mesmo, talvez. – concluiu, massageando a têmpora com dois dedos.
     Estava muito calor, Tenório sentia as têmporas palpitar e uma ocasional gota de suor que descia por seu rosto até se soltar.
     – Outono, você quer tomar um sorvete? – perguntou, segurando sua têmpora direita. – Estou morrendo de calor, é o que eu preciso, agora. Topa?
     Outono já estava atrasada para voltar ao trabalho. Resolveu ir ainda assim.

* * *


     Sentados em uma praça, Outono e Tenório tomavam um sorvete de chocolate. O clima continuava mais quente do que o ideal, mas felizmente eles estavam sentados à sombra, sem muita preocupação. As crianças corriam pela larga praça, os pais sentados em outros bancos. Algumas crianças estavam em bicicletas, apostando corridas ao redor de uma pequena lagoa com carpas. Outono observava a movimentação da praça com curiosidade.
     – Sabe, Tenório, eu fico tão fascinada com as outras pessoas. É o tipo de coisa que realmente me faz me sentir feliz, quase realizada.
     – Ah é? – Tenório estava um pouco atrapalhado com seu sorvete.
     – Veja por exemplo aquela senhora do outro lado da praça. Quando chegamos, ela estava andando um tanto sem rumo, cabisbaixa, um pouco desolada.
     – Cê fala aquela senhora louca ali?
     – Eu não sei se ela é louca. Eu sei que ela caminhava e caminhava e caminhava e sua tristeza parecia não ter fim, parecia carregar um grande martírio sobre suas costas, seus olhos tristes e baixos. Até que uma criança veio correndo em sua direção e lhe sorriu, com toda ternura. Tomou sua mão calejada e colocou-a em seu rostinho sorridente, então beijou a palma da mão da senhora e voltou para brincar em seguida, rindo, satisfeito. – Outono estava com os olhos marejados, enquanto falava. – Aí sabe o que ela fez, Tenório? Sabe o que essa mulher que você chama de louca fez? Ela sorriu, emocionada. Seus olhos brilhavam como dois diamantes. Então, ela soprou beijos para o menino que brincava, ainda olhando para ele e então sentou-se naquele banco, sorrindo, feliz, como que realizada.
     – Então… Ela é louca mesmo?
     – Não, Tenório. Ela é livre. Ela é feliz. Sei que parece que não há nada de diferente na vida dela antes e depois desse ocorrido, que é muito insignificante. E é mesmo, por que não? Mas eu vejo como se ela estivesse solta, sem direção e de repente, percebeu que precisava de tão pouco para ser feliz. E está feliz. O carinho e o beijo que ela recebeu em sua mão ficará ali, como parte dela até o fim da vida. – Outono continuava falando, com os olhos distantes e empolgada como Tenório não a viu durante todo o dia. – E isso me fascina tanto, ter visto isso, presenciado e percebido isso. Percebido a alegria, tão sólida quanto o chão em que pisamos. Sentir o amor puro, verdadeiro e do coração, sem maldade, sem luxúria, só essa energia boa, real, sabe? – seu rostou se contraiu como se fosse atingido por alfinetes invisíveis. – E então, o que me fere é perceber que só sou feliz assim, com a felicidade dos outros. Não sinto inveja das outras pessoas, todos devemos ser felizes, sem dúvidas. Mas talvez eu sinta… frustração, entende?
     Tenório ouvia com atenção, seu semblante preocupado e rijo ostentavam seus olhos pálidos, esvaziados na procura interna pela compreensão e reflexão. Seus lábios entreabertos pareciam medir palavras que não tinham razão em ganhar som. Apenas acenou brevemente com a cabeça, quatro rápidos movimentos em afirmação à pergunta de Outono.
     Ela passou as mãos pelo rosto e respirou fundo.
     – Às vezes, parece que é uma maldição, sabe? Se eu não consigo encontrar a felicidade em mim, é porque eu sou Outono. – Ela deu uma risada nervosa. – É ridículo! Parece ainda mais ridículo em expressar isso a alguém, mas eu sinto que sempre volto a isso: a melancolia passageira de uma estação como motor de ser. O que eu sinto é: se um mantra utiliza-se de determinados sons pois aqueles sons possuem a vibração certa para abrir chakras, iluminação, felicidade… parece que vivo sob a sombra de uma vibração que está ligada ao que chamamos de outono: um período que precede o inverno. – Ela sentia seu coração acelerar e sua testa umedecer-se de uma fina camada de suor. Retirou um lenço de papel de sua bolsa e enxugou sua testa.
     Apesar disso, nesse momento o sol já estava mais brando. O vento gentil balançava os cabelos castanhos de Outono. Tenório não transpirava e permanecia perdido em reflexões. Do outro lado do parque, a senhora tirara um pacote de seu bolso, um pacote com farelos de pão. Ela lançava os farelos na praça para os pombos afoitos. O rapazinho de outrora então corria entre as pombas em saltos e urros excitados, afugentando-as como se fosse um tiranoussauro e exercesse grande poder sobre as pobres criaturas que cruzavam o seu caminho. A cada salto em meio às pombas, um urro feroz levava aos céus dezenas de pombas desajeitadas, enquanto o menino gargalhava de prazer. A senhora fechava os olhos e ria com vontade, levando as mãos ao alto enquanto lançava o corpo para trás, erguendo os pés em excitação. Então, o menino olhava para a senhora em confirmação, corria e se escondia para novamente repetir o truque: os farelos de pão, o ataque do tiranossauro, o voo desajeitado das pombas e as gargalhadas mútuas. Um acordo silencioso se formou entre aquela senhora e aquele menino. Brincaram sem nada conversar por muitos minutos. E uma hora haviam de parar, fosse por falta de farelo de pão, por não restar mais fôlego no menino, pela extinção das pombas ou por um infarto na senhorinha. Qualquer motivo, banal ou não, poderia por fim àquele jogo. Porém, aquele momento vive e viverá, invisível aos olhos, na velha, no menino e na praça para sempre. O banco, as árvores e o chão, de todas as memórias que já possuem a todas que ainda terão: momentos como esse deixam rastros tão iluminados e positivos como a mais bonita oração.
     Outono viu a senhora guardar o saco de pão e acenar para o menino em despedida. O menino, satisfeito, acenou para a senhora, deu meia volta e correu para junto de seus pais. A velha saiu da praça por um portão lateral. O menino sentou-se na areia e desenhava com um graveto. Em ambos, uma coisa estava clara: a felicidade era demais, transbordava seus seres e formava ondas coloridas por onde passavam.
     Tenório também viu tudo isso, em silêncio. Tocou Outono em seu braço, olhou para seu rosto tão bonito e disse, um tanto rapidamente:
     – Você se queixa de um problema quando sequer dá espaço à solução, Outono. Nenhuma tristeza é infinita, ninguém é infeliz por completo. Você buscou tantas teorias e explicações que nem sequer se permitiu ver o que é mais simples nisso tudo. No mundo, enquanto há outono de um lado, do outro é primavera. Enquanto um povo se prepara para o inverno, o outro aguarda o verão. E nós somos todos os lados ao mesmo tempo, você é. Se você é outono no nome, possui a primavera no coração.
     Ao terminar, Tenório sorria vivaz, seus olhos abertos e brilhantes nos olhos de Outono. Sua respiração um pouco ofegante por ter falado rápido demais, mas já recuperando o fôlego. Era como um acrobata que após meses de ensaios, finalmente conseguia cair com segurança colocando os dois pés no chão e erguer os braços em finalização.
     Outono o encarava de volta. Silenciosa, sentia desfazer. Era isso? Tão simples assim? Como em uma verificação matemática rigorosa, testava essa provável verdade tão simples a cada um dos seus anseios internos. Tirava a prova e se convencia, um a um, religiosamente.
     – Acho… Acho que você tem razão. – concluiu Outono, com um sorriso ainda incerto, como quem descobriu o segredo do universo. Sentiu uma certa urgência, apertou a mão de Tenório em empolgação e pediu licença. Se desvincilhou e saiu.      Tenório sorria.

* * *


     Quando se deu por si, Outono estava no ônibus, a caminho de casa. Queria encontrar os pais e dividir com eles o que provavelmente eles já sabiam. Os pais sempre sabem, mas os bons pais deixam que os filhos descubram por si só.
     Mas foi aí que aconteceu. Sentada no banco do ônibus, no corredor, Outono olhava pela janela distraída. Sentiu um calor em sua mão, trazendo-a de volta. Era a mão de uma menina de cerca de seis anos tocando sua mão para chamar-lhe a atenção. Sorria com inocência e ternura, banguela de quatro dentes distintos, formando pequenas janelas em um sorriso tão sincero. Era um pouco estrábica, usava óculos de leitura, seus óculos eram grandes, de uma armação lilás translúcida. Tinha diversas pulseiras de plástico em seus braços e os cabelos um pouco desgrenhados. A mãe aguardava a chegada do ponto de ônibus em que desceria, segurando a menina pelo pulso e, distraída, perdia aquele momento em que sua filha, em um breve malabarismo, tirava uma de suas pulseiras coloridas e entregava para Outono. A pulseira era amarela. Ambas sorriam muito, a menina estava completamente encantada. Outono aceitou o presente com um certo desconforto de quem não sabe o que fazer mas oferece o coração em gratidão. Sorria de volta à menina, tão inocente e sábia em suas considerações e ela, tão adulta em sua forma buscando entender a felicidade que para a menina não era segredo nenhum.
     A menina se despediu em acenos exagerados enquanto era levada para fora do ônibus pela mãe. Nos instantes em que o ônibus começava a seguir viagem, Outono viu a garota pela janela, saltitando e dançando ao redor da mãe que buscava qualquer coisa em sua bolsa.
     Outono colocou a pulseira amarela em seu pulso e notou ali pequenas flores em relevo. Rodou o pulso observando a pulseira nos mais diversos ângulos, curiosa. Levantou-se e deu o sinal, descendo no ponto seguinte. O vento soprou sobre seus cabelos enquanto o ônibus se afastava.

20110821

Nota

(a data está ilegível)

     Acordei hoje pensando em você, como todas as vezes que acordo e em instantes de descuido. Mas hoje, em especial, levantei-me por sua causa, apenas por você. Você, como um alarme de incêndio, um dos últimos recursos, ao qual tento não utilizar com frequência – até quando é cabível? Quantas vezes é possível usar antes de estragar ou perder o efeito? Não quero correr o risco de arruinar (ainda mais) a nós sob falsos pretextos e desculpas que claramente dependem apenas de mim para mudar – e eu ainda não sei o que é preciso para mudar o status quo.
     Você não quer me ver sob nenhuma circunstância. Sequer imagino que você lerá esta nota. Talvez seja compreensível, talvez necessário. Eu já a machuquei demais, toda e nenhuma cicatriz em suas mãos e braços e pernas e colo e seios e coração. Ninguém pode ver essas cicatrizes exceto nós dois.
     Outro dia, sinalizei sem intenção que ainda a amava, uma menção quase genérica em meu mural. Um pequeno sinal, inconsciente. Seria invisível de tão insignificante para qualquer outra pessoa. Mas você viu. Como você o encontrou? Como? Após tantos dias que o sinal fora exposto, você o respondeu. Você estava ali quando ele apareceu e decidiu responder só quando julgou correto? Ou você, igualmente inocente, em buscas curiosas de como eu estava e o que ando fazendo encontrou essa informação? Não sei como, não sei o porquê mas ao encontrar, olhou para mim com desprezo em suas palavras e em palavras curtas expressou os mais longos descontentamentos. E se foi em seguida. Coisa bastante difícil, é claro. Não é fácil tampouco prazeroso lidar com o desprezo.
     E quem poderia culpá-la? Em largos tropeços a deixei só quando você tinha seu coração mais exposto e ambos nos marcamos em cicatrizes inúmeras vezes. Você pode não mais acreditar mas jamais tive esta intenção. Eu falhei, admito, mas alego inocência. Apesar de você ter esperado e tentado – depositando sua paciência e carinho em mim – acho justo que eu colha o que plantei no passado.
     Se involuntariamente a sinalizei não aceite como uma provocação, apenas como outra pequena semente de tantas similares que carrego em mim que conseguiu fugir sem alarde de meu silêncio e se plantar por aí.
     Sob o risco de parecer arrogante e egocêntrico, afirmo o que meu coração diz agora: se após tanto tempo que não tínhamos contato, Camila, e especialmente após dias desse sinal quase insignificante, de alguma forma você conseguiu encontrá-lo, então você também ainda me ama. O bastante para encontrar os sinais e códigos. O bastante para se incomodar em responder. O bastante para tentar me fazer sofrer em suas palavras, como uma mulher que o faz sob a real ameaça de perda e desprezo. O bastante para mim.
     Não acredito estar certo ou justo ou até mesmo coerente. Não desejo insultá-la ou diminuir seus sentimentos. Talvez, eu esteja agindo como uma criança, que busca razões na imaginação tentando seguir nos mesmos passos e motivações que todos os adultos, um ponto ou dois abaixo do devaneio, no mínimo seis metros acima do chão. Se todas as manhãs acordo pensando em você é porque a amo e, como uma criança que tem seu sono velado por heróis e fantasias, preciso acreditar em seu amor para poder dormir todas as noites.

     com todo amor e honestidade,,,

do sempre seu,


               Gregor

20101223

Autocombustão



    O carro buzina lá fora. Carlos grita da janela de seu Corsa 99.
    – Vamos, Márcia! A gente tá atrasado pro cinema!
    Márcia arrumava-se rapidamente em seu quarto, de frente para um grande espelho atrás da porta. Subia nos sapatos de salto alto enquanto pendurava os brincos, alcançando em seguida o pó compacto que estava sobre a penteadeira. Aplicou um pouco de blush rosáceo sobre as maçãs do rosto e colocou os cílios postiços. Realçou os lábios com um batom de um vermelho apagado e estava pronta. Aproximou-se do espelho e escancarou os dentes como um cão, analisando se havia algum resquício de batom, para em seguida pegar a bolsa deixada sobre a cama.
    Márcia desceu as escadas rapidamente e chegou ao carro. Abriu a porta e entrou.
    – Estou pronta! Vamos? – disse virando-se para Carlos.
    Carlos não sequer olhou para o lado, apenas virou a chave ligando o motor e colocou o carro em movimento.
    – Você sempre se atrasa. Espero que cheguemos a tempo para o filme.
    – Desculpe.
    – Márcia, não é questão de desculpas. Você sempre pede desculpas, mas numa outra oportunidade novamente se atrasa.
    – Por Deus, Carlos. Não é assim.
    – O Gregor já deve estar lá. Marcamos com ele às 16h e saímos de casa quinze minutos depois do horário marcado. Ele vai ficar puto.
    – O Greg sempre se atrasa também.
    – Isso é problema dele, Márcia. O nosso é chegar no horário, como se algo assim fosse possível. – disse a ela, em um tom agressivo, acima do ideal.
    Dizendo isso, Carlos alcançou um cigarro do maço e um isqueiro que estavam sobre o painel do carro, o acendeu e soltou uma densa nuvem de fumaça. Márcia permanecia em silêncio olhando para baixo. Em seguida, abriu sua bolsa e retirou para si um cigarro. Carlos olhou rapidamente para o lado e com o mesmo isqueiro que utilizara, acendeu o cigarro para ela.
    – Obrigada. – disse ela, com a voz baixa.
    – Pomba, Márcia. Não gosto de ficar puto contigo, mas eu não consigo evitar e acabo falando demais.
    – Você errou no tom, mas você tem toda razão. – falou Márcia olhando para ele.
    Carlos olhou para o lado com algum estranhamento. – Você não costuma dar o braço a torcer tão facilmente.
    – Às vezes as pessoas mudam. Preferiria que eu começasse a gritar contigo quando você sabe tanto quanto eu qual é o ideal da situação? – perguntou Márcia, tragando seu cigarro em seguida.
    – Não, não, em absoluto. – respondeu Carlos, enquanto refletia sobre aquele súbito momento e distraidamente coçava o braço e, depois, o pescoço.
    – Olha, tem uma vaga ali! – irrompeu ela apontando para um espaço vazio entre dois carros.
    Carlos lançou a bituca pela janela e estacionou o carro com leveza. Ele sempre fora um bom motorista, do tipo de pessoa que você rapidamente percebe sua habilidade ao volante não em detrimento aos outros motoristas, mas por ser um motorista acima da média. Felizmente ele nunca se gabara de tal qualidade, ele simplesmente dirigia.
    Desceram do carro e caminharam até o cinema em silêncio. Carlos olhou para os horários das sessões do filme e em seguida para seu relógio de pulso, conferindo se o atraso tinha sido prejudicial. – Chegamos a tempo! – completou.
    Ela olhou para Carlos sorrindo, passou a mão nos longos cabelos castanhos e olhou ao redor. 
    – Onde está o Gregor?
    – Ainda mais atrasado do que nós! – ele disse rindo. Ela riu também. – Vou comprar os ingressos, por via das dúvidas.
    Enquanto comprava os ingressos, ela apanhou seu celular da bolsa e ligou para Gregor. – Oi Greg! Onde você tá?
    – Estou chegando aí em oito minutos. Já começou o filme?
    – Não, não. Fica tranquilo. O Carlos já tá comprando os nossos ingressos.
    – Ah. Puxa. – Gregor parou um instante. – Obrigado!
    – Não por isso. Nos falamos já já.
    – Até logo!
    Ela desligou o celular e olhou em direção a bilheteria. Carlos já estava voltando, com os ingressos na mão, sorrindo.
    – Conseguiu falar com ele?
    – Consegui sim, ele está chegando.
    – Ah, Greg… Vamos fazer assim, você quer pipoca?
    – Pipoca? Não, obrigada. – ela respondeu ainda segurando o celular com a mão esquerda, olhando distraidamente para um cartaz de uma das próximas atrações. 
    – Tem certeza?! Eu vou ali comprar. Não consigo ver um filme sem pipoca. Vamos lá, eu compro um chocolate pra você.
    Chegando à bombonière, ele pediu sua pipoca, refrigerante e um chocolate que estava na vitrine. A voz de Gregor distraiu a ação.
    – Cheguei a tempo? – ele perguntou ao casal, animadamente. Sua testa estava molhada de suor e seu ar, bastante cansado, mas Gregor exibia um largo sorriso em seu rosto. 
    – Bem a tempo! – respondeu Carlos. 
    Carlos deixou a pipoca sobre o balcão e apertou vigorosamente a mão de Gregor. Em seguida, Gregor beijou o rosto de Márcia, abraçando-a em seguida. – Como vão? – perguntou.
    – Bem, muito bem. A Márcia nos atrasou um pouco mas ainda assim chegamos antes de você, cara! – ele disse em tom de brincadeira. Márcia o olhou indignada. Gregor olhou para Márcia percebendo sua irritação e sentiu-se um pouco incomodado.
    – Eu sou o rei dos atrasos! – desconversou. – Escutem, vocês querem entrar já? Além de pegar um bom lugar, gostaria de me aproveitar dos benefícios reconfortantes do ar condicionado da sala.
    – Quem mandou vir correndo? – Carlos provocou.
    – Se eu não venho correndo, eu não chego!
    Márcia já começara a caminhar em direção à sala sem falar, consequentemente atraindo os dois rapazes atrás de si.

* * *

    O filme era uma agitada história policial, com carros em alta velocidade e explosões regulares. Márcia sentia-se profundamente entediada, ora pela película em si, ora pela irritação com o noivo. Sem grandes movimentos, inclinou-se para a esquerda, ao ouvido de Carlos e sussurrou. – Volto já.
    Levantou-se, passou em frente a Gregor, saiu da sala. Foi em direção à rua com a bolsa a tiracolo, parando no alto das escadas que levava à calçada em si. Apanhou um cigarro da bolsa e acendeu com um fósforo. Batia o pé no chão, rapidamente, extremamente nervosa. Observava os arredores, todos os carros que passavam, as pessoas passando, o balançar das árvores. O vento soprava seus cabelos e tocava seu rosto com gentileza. Uma mão tocou seu ombro. Era Gregor.
    – Posso te acompanhar? – ele perguntou.
    – Sim, claro! Você quer um cigarro?
    – Não, estou com o meu aqui. – ele falou, alcançando um maço em seu bolso e acendendo um cigarro em seguida. – Que filme bobo, né?
    – Sim, insuportável.
    – Não sei se fico mais impressionado com as atuações geniais ou com a facilidade que tantos carros explodem na sequência. Você conseguiu ver a marca dos carros? Porque eu sei que tipo de carro eu não quero comprar: os de autocombustão.
    Márcia olhou para Gregor e riu um pouco, desviando o olhar em seguida, voltando a desatenção para frente, tragando o cigarro e soltando a fumaça em seguida, mas permanecendo em silêncio.
    – Tá tudo bem, Márcia? – ele perguntou olhando diretamente para as têmporas dela, que estavam úmidas de suor, apesar da temperatura estar bastante agradável naquela época do ano.
    Ela permaneceu olhando para o horizonte. – É que o Carlos me tira do sério! – ela disse com uma clara irritação em sua voz, voltando o rosto para ele, que a olhava calmamente. – Apesar de cobrar uma postura de mim e aparentemente me entender, ele simplesmente não consegue deixar um momento, uma única falha passar.
    – Você fala do negócio do atraso?
    – Sim, o atraso. Você acredita que ele falou aquilo? Precisava frisar quem causou a droga do atraso? Não chegamos antes de você de qualquer maneira? – ele consentiu com a cabeça. – Pois bem, qual a diferença? Note, não estou questionando quem atrasou a quem, eu causei o atraso, sei disso. Mas questiono a atitude de trazer isso, sem a menor necessidade, apenas pela provocação, sabe? – dizendo isso, Márcia percebera que seu cigarro já estava apagado e segurava apenas a bituca, lançando-a ao meio-fio e pegando mais um cigarro em sua bolsa.
    – Mas o Carlos é bastante brincalhão, não deve ter sido por mal, Márcia.
    – Essa não foi a primeira e nem sequer será a última vez que ele faz esse tipo de coisa. O Carlos simplesmente não sabe ficar quieto, em alguns momentos. E pensando bem, não é nem questão de provocação. É o fato dele ser inseguro e utilizar esse tipo de brincadeira inocente para deixar claro para si e para quem o ouvir de que a culpa é minha. 
    Enquanto Márcia falava, Gregor sentou-se ao primeiro degrau da escada e fez um gesto para que ela o acompanhasse. Ela sentou-se ao seu lado e continuou.
    – E não é só isso, e não só o Carlos. É tudo. São todos. Todos são assim, todos são egoístas e imperdoáveis, sabe? Que droga de mundo é esse, Greg? Você fica ao lado do seu noivo, dos seus amigos, de sua família. Faz de tudo para que todos fiquem bem, larga o que está fazendo para ajudar a quem for, no momento que for. E no momento, nos poucos momentos que você simplesmente precisa de de uma palavra amiga, um conforto, uma preocupação, eles viram as costas pra você e deixam você na mão. – Márcia começou a massagear suas têmporas, fazendo uma pequena pausa. Alguns fios de cabelo já estavam colados em sua têmpora devido ao suor enquanto falava e agora, começavam a se libertar novamente.
    – Você realmente precisa se acalmar um pouco, Márcia. Desse jeito você vai ter um treco daqui a pouco. – Gregor falou colocando a mão sobre o ombro de Márcia, massageando-a gentilmente.
    – Greg, não pense que eu sou mal agradecida ou acredite que apenas porque eu fiz algo pela pessoa, a pessoa deva fazer algo por mim. Não é isso, entende? Não é uma mera questão de troca. – dizendo isso, ela deixou as têmporas livres novamente. – É o simples fato de você saber que pode contar com alguém, ou se deixar pensar que esse alguém pode proporcionar surpresas, essas coisas, sabe?
    Gregor olhava atentamente para Márcia enquanto ela falava. Ela gesticulava muito e seus olhos estavam cheios d’água.
    – Aí, quando você faz algo errado, que desagrada ou simplesmente precisa de um pouco de ajuda, os outros, o Carlos, todos são incapazes de simplesmente perceber que todos erram ou que a outra pessoa precisa de ajuda. Eles só olham para si mesmos, o tempo todo. Ficam tão ensimesmados que não percebem todo o apoio que você já deu, cobram mais apoio e jogam na sua cara seus erros. – dizendo isso, ela começou a buscar em sua bolsa um pequeno pacote de lenços de papel. – Essa droga de nariz que fica sempre escorrendo. – ela secou seus olhos e limpou delicadamente seu nariz.
    Gregor observava a aventura de Márcia com o lenço de papel, com a cabeça apoiada em sua mão e seu cotovelo apoiado sobre sua perna. – Lembra quando nós nos conhecemos, que estudávamos juntos no ensino médio? – ele perguntou.
    – Sim, lembro sim. O que é que tem? – ela indagou ainda distraída com a coriza.
    – Você se lembra que você namorava esse rapaz, o Alberto Qualquercoisa? Como você era feliz ao lado dele?
    – Claro. E você namorava a minha prima, a Leila. – e colocou o lenço usado em uma pequena sacolinha plástica que carregava consigo para tal finalidade. 
    – Pois é… Lembra daquele dia em que todos viajamos para o interior e fomos àquele parque com um baita lago lindo em um dia super calmo?
    – Valha-me Deus, Greg, mas que suspense todo é esse? É claro que eu me lembro, eu me lembro de tudo daquela época.
    Gregor se levantou e se espreguiçou. – Pois bem, aquele dia foi um dos dias mais simples que já passei em minha vida. E ainda assim um dos mais divertidos. Eu me lembro de cada cor, de cada textura, de cada cheiro. – ele sentou-se novamente. – Eu tenho aquela imagem em minha mente com a força da mais bela pintura jamais feita.
    – Aquele dia foi mesmo incrível. Lembra que fizemos uma corrida com você e o Alberto de cavalos, nós nos ombros de vocês e aí vocês dois já tinham armado tudo e lançaram a gente no lago? Seus tontos! – dizendo isso, ela sorriu e deu um tapa amigável no ombro de Gregor. 
    Ambos ficaram rindo por algum tempo, diluídos em memórias. As memórias daquele dia ensolarado, o lago tal qual um espelho, as árvores lindas, vivas e verdejantes. As brincadeiras infantis de corrida, polícia e ladrão e esconde-esconde entre quatro jovens adultos sobre a grama verde e cheirosa. O piquenique confortável, as risadas, os sorrisos, as gargalhadas. A terra úmida próxima ao lago que envolvia seus pés descalços e a simplicidade de uma simples tarde, distante de tudo e todos. 
    Subitamente, Márcia voltou a si. – Mas e daí, Gregor? O que é que tem tudo isso?
    – Oras. – ele acendeu outro cigarro. – Nesses momentos, geralmente eu gosto de me transportar para os melhores lugares de minha memória e me deixar tomar pelas boas energias do que já passei.
    – Mas Greg… As coisas são diferentes hoje. – agora quem pegou outro cigarro em sua bolsa foi ela. – As coisas são completamente diferentes, aliás.
    Greg tragou o cigarro e soltou a fumaça lentamente. – Aí é que eu discordo. Por que elas são diferentes? Por que elas precisam ser diferentes?
    – Ué?! Porque eu mudei. Porque as coisas mudam. As pessoas mudam. Eu não namoro mais com o Alberto, mas com o Carlos, inclusive.
    – Mas me diz, você se veria casando com esse Alberto caso ele tivesse a pedido em casamento? Tanto faz se naquela época ou hoje em dia?
    – Não sei! Não sei… Como eu posso saber um troço desses, assim? – ela respondeu um pouco indignada.
    – Pensa bem. Você não continuou com o Alberto por uma razão. O tempo que vocês passaram juntos foi ótimo, mas uma hora, acabou. Com o Carlos, esse tempo não apenas está acontecendo como você quis seguir adiante, vocês vão se casar até, caramba!
    – Sim, eu sei.
    – Pois bem, Má, alguma coisa a fez pensar em largar o Alberto quando você terminaram e a disse para continuar com o Carlos independente desses ou quaisquer problemas. 
    – Mas… Droga, Greg, mas que droga. Eu amo o Carlos mas às vezes as coisas ficam… insustentáveis. 
    – Sinceramente, Má? Só você pode ser feliz, se fazer feliz. Ainda que você tenha escolhido ter ele ao seu lado para o resto da sua vida, ele precisa de ajuda para entender como você se sente e o que a agrada ou desagrada. Mas sem se deixar… Não sei? Vitimar? Não se deixe levar por esse tipo de ideia e se considerar uma vítima da situação. Só você pode ser agente da sua felicidade, ninguém mais. Você lembra com tanto carinho daquele dia porque você escolheu estar lá, naquele dia, conosco, brincando e se divertindo. Entende? – Greg terminou de falar e lançou a bituca no degrau ao lado de seu pé, extinguindo o cigarro com a ponta do pé. 
    – Má, você é feliz? – completou.
    Márcia permaneceu em silêncio, após as palavras dele e ficou novamente encarando o vazio, fumando, absorvendo, refletindo, ponderando. Por fim, acabou abaixando os olhos e viu o seu pequeno relógio ao redor de seu pulso delicado apoiado em sua perna. Levantou-se de sopetão lançando sua bituca em direção à rua.
    – Minha nossa! Já estamos aqui há quase meia hora!! Vamos voltar correndo, já passou da metade do filme!
    E ambos correram de volta para o cinema.

* * *

    Já próximo ao clímax do filme, onde o mocinho está prestes a resgatar a mocinha, montado em seu carro veloz e armado com a mais bela pistola, o cinema estava repleto de sons de tiros, explosões, barulhos de motor e ameaças do vilão. Carlos estava vidrado com toda aquela ação. A sala, iluminada apenas pelo reflexo da projeção das sequências repletas de adrenalina e tensão estava quase que por completo imersa nos rumos inesperados que o roteiro tomara, deixando todos sem fôlego, à exceção de Márcia.
    Márcia voltara um pouco desconexa. Não conseguia prestar atenção às sequências daquele filme, seus olhos encaravam a projeção mas buscavam visualizar outras questões. Sentia-se afligir sentada ali, no escuro, vendo um filme desinteressante, dos tantos que já vira ao lado de Carlos simplesmente porque são os filmes que ele gosta de assistir. Ela nem gostava tanto assim de cinema, afinal. E buscava em si as mais bonitas imagens para sentir-se melhor. Uma tentativa de acalanto próprio.
    Enquanto homens atiravam uns contra os outros na tela, Márcia sentia novamente seus olhos se encherem de lágrimas. Dessa vez, inclinou-se para a direita, em direção a Gregor.
    – Greg? – sussurrou. – Lembra quando naquele dia no parque nós subimos em uma árvore para ver o pôr-do-sol e quando anoiteceu, todos descemos, menos você porque você se lembrou, lá do alto que tinha medo de altura e levou quase meia hora pra descer e todos quase morremos de tanto rir?
    – Lembro, claro. – ele sussurrou de volta.
    – Greg… – ela apertou a mão dele contra a dela. – Eu era feliz naquela época, não era?

20100725

Novidades n'O Pinball Mutante

   O Pinball Mutante agora está de casa nova!

   E eu tenho um domínio para chamar de meu! A partir de agora, você pode (in fact, deve) acessar através de pinball.semtitulo.org. Economiza-se só uns dois caracteres, mas é melhor: agora é só "pinball" e não "pinballm". Cai o blogspot.com e fica o semtitulo.org. Facilita, centraliza tudo, fica tudo mais simples!

   Então, fica dica: atualize seus favoritos e seus feeds RSS (if any!) porque sabe-se lá até quando fica valendo o endereço antigo.

   Ah! E em breve o semtitulo.org fica integralmente no ar. Por hora, está em construção.



   Não prometo que vai ter texto novo aqui em breve porque não é assim que as coisas acontecem.

   E você já sabe bem disso.

20100308

Re: Acidentes

      São Paulo, 08 de março de 2004.

      Li um texto publicado na edição de Janeiro chamado "Acidentes" e gostaria de dividir algumas palavras com vocês porque finalmente entendi de certa forma do que se trata.
      Eu fiquei bastante intrigado com essas linhas e até esta manhã eu não sabia bem o que pensar. Talvez seja verdade, o autor tenha alguma razão em suas palavras.
      Estava no ponto de ônibus esperando o meu transporte chegar. Estava amanhecendo. Apesar de já estar bastante claro, era possível perceber alguns raios de sol amarelados que cortavam o ar, entre as folhas e saindo de algumas nuvens. Um dia bastante bonito. Subitamente, aconteceu. É difícil expressar a euforia que sinto em relação a isso e é provavelmente impossível dividir isso com alguém, mas preciso tentar. Não foi um atropelamento entre automóvel e gente, mas entre gente e bicicleta. Não houve vítimas fatais, ninguém sequer se feriu de maneira grave. Mas mesmo em evento tão menor, a energia gerada foi tão impressionante e tão... Delicada. Quase invisível aos olhos. Os fatos vocês já sabem, vou tentar descrever o que pude observar além do óbvio.
      Um rapaz atravessava na faixa de pedestres, todos os carros estavam parados no semáforo. Ele atravessava e a um metro, talvez um metro e meio da calçada, pareceu-me que ele parou. Uma bicicleta passou e passou por nós. Não sei dizer bem o que aconteceu, no entanto é a parte mais bonita de todas. Parece que eu o percebi parar, mas provavelmente isso não aconteceu, a primeira bicicleta tinha passado com alguma folga pela rapaz. O que aconteceu foi um efeito similar a uma explosão atômica. Como se todo o ar e os sons e a luz do sol e os olhares de todos os presentes fossem subitamente sugados para aquele ponto em um instante muito rápido, como se estivesse armazenando energia para o choque que veio em seguida. Uma segunda bicicleta veio de encontro ao garoto. Digo desse momento de concentração de energia porque tudo foi para aquele ponto e deve ser loucura, mas acredito que todos viram o que vi, como eu vi. Não sei se perceberam da mesma maneira que eu, mas sinto que todos prenderam a respiração ao mesmo tempo. Um garoto com os olhos estatelados aparentemente colados ao chão. Uma bicicleta em alta velocidade colidindo com ele, liberando uma explosão estática, reconstruindo o ar para todos nós, num único espasmo violento como uma forte onda seguida por outras menores, mais rápidas, de intensidade decrescente. Aquela onda de energia devolvendo a todos nós luz, ar, poesia, sons e eletricidade, fazendo todos tremer em excitação, medo, humanidade e silêncio. Uma oxidação instantânea, manchando e corroendo duas pessoas, sendo exposta e expandindo-se para todos que ali estavam começando um novo dia. O rapaz da bicicleta foi lançado sobre o guidão e além. O garoto que atravessava sendo bruscamente lançado ao chão, sobre a sarjeta. O instante de poesia então estava terminando.
      Findo o momento da poesia, essa coisa (a melhor associação que faço, que li de outros autores, é o "it" que Clarice Lispector descreveu) esse instante-coisa, absoluto, nem passado nem futuro, inatingível e impossível de se nomear porque não é, além do que foi, mas sequer sabemos com certeza se foi. É "it". E assim que começou e terminou, inconsciente para a maior parte de nós (e não sei se pude percebê-lo por completo, mas fiquei comovido por tê-lo percebido o tanto que pude), tudo voltou ao normal, ao cotidiano. E o que mais me impressionou é que foi um instante-coisa poesia talvez de menor intensidade, mas tão igualmente bonito como imaginei que seria.
      Algumas pessoas correram em direção ao epicentro. Só fiquei tocado mesmo porque o primeiro som, o primeiro som que se tornou audível mais uma vez foi um grito estridente, agudo, desesperado, cheio de dor. Era a mãe do garoto que atravessava. Após as primeiras pessoas que se aproximaram, veio essa mulher, atravessando as duas largas pistas para três carros, cada, que compunham a avenida, correndo às cegas, arriscando a própria vida, com lágrimas nos olhos. Ela se aproximou, o garoto segurava o braço. O outro, da bicicleta, parecia confuso. Ambos eram bastante jovens. O primeiro mais. Mas ambos tinham uma expressão de choro no rosto. Um movido pela dor, outro pelo amor. No fundo, ambos movidos pelo que restou da poesia. Como os últimos versos da última estrofe, melancólicos e enigmáticos. Ambos não sabiam, mas tinham feito poesia, tinham se tornado humanos por um instante. E isso lhes doía muito.
      Todos nós ali experimentamos ser humanos com eles, em menor intensidade. Fomos atingidos pelo instante-coisa que eles criaram ali. Fomos agraciados por isso em uma manhã de sol, que parecia ser como toda manhã, de uma segunda-feira como toda segunda. Alguns receberam com maior intensidade, outros com menor. Não posso responder por todos ali, mas sei que dali eu saí com um misto de felicidade e dor, porque presenciei poesia. E pra poesia, entendi como isso: um grande conflito que numa descarga de insanidade nos torna humanos para em seguida, mais uma vez sãos. Sendo assim, compartilho isto com vocês e digo:
      Obrigado.

      Um abraço!


      Gregor.

20100225

A sense of struggle

      Há uma sensação que é difícil definir e não sei se todos os seres humanos conseguem percebê-la ou mesmo controlá-la. Não acho que seja controlável ou passível de antever que isso vai acontecer. É um sentimento de nada, de crise pessoal e profissional. Uma nada errado, de passos em falso e de incompetência. Acredito que todos nós passemos por isso, em pelo menos um momento de nossas vidas e se não são esses pequenos incidentes pessoais que ajudam a construir nosso caráter e nossa visão de mundo, eles ao menos são suficientes para causar alguma auto-reflexão para seguir em frente ou desistir de uma única vez, porque o nada gera algo, uma sensação. Outro dia, encontrei nos olhos de Clarice essa sensação. Clarice sempre fora uma grande amiga minha, até onde posso me lembrar. Sempre tivemos uma relação extremamente espontânea e natural, assim como foi natural nossa aproximação e amizade. Ela sempre tivera uma personalidade incrível, intensa, sincera e carinhosa. Mas de vez em quando ela passava por esses momentos de ligeira depressão. Durava um dia ou uma semana. Era súbito. Aos olhos estranhos, com certeza Clarice parecia apenas uma mulher desesperada por atenção. Eu sabia que não era o caso, mas não sabia bem como e se eu podia ajudá-la.
      Se outras vezes isso já tinha acontecido, por que me importar com essa sensação nos olhos de Clarice desta última vez? O fato é: sempre me importa, sempre me importou e sempre senti a minha fragilidade refletida na dela e além de uma identificação com o problema em si, não poderia simplesmente subjugar Clarice especialmente em um momento tão próprio e delicado. Se por si isso já me era suficiente, neste dia me pareceu infinitamente mais forte, triste, desolado e inevitável. Mas o que alguém pode fazer por outra pessoa uma vez que cada pessoa só é responsável pela própria felicidade e vida? Eu poderia dizer muitas palavras bonitas, bem colocadas. Mas se aprendi algo em dadas circunstâncias seria que neste momento, quando se trata realmente disso e é sincero, são necessários sinceridade e honestidade plausíveis. Nada de eufemismos ou elogios excessivos. No final das contas, pra mim, esta sinceridade é a única coisa que as pessoas devem umas às outras em qualquer situação.
      Abordei Clarice, gentilmente. Ela estava em um furacão de pensamentos confusos, percebia uma tempestade através de seus olhos. A perguntei o que havia. Ela subiu seus olhos avermelhados e tristemente respondeu um curto "nada" e voltou a atenção para o monitor em que ela trabalhava. Pego uma cadeira e me sento ao seu lado.
      "Mesmo?", questiono.
      "Sim, claro. Por que a pergunta?" Clarice me questiona de volta, com alguma agressividade defensiva natural.
      "Ah... Você parece chateada, triste. Está quieta e não sei... Diferente." respondo enquanto tocava seu ombro.
      "As pessoas não são sempre iguais, todos os dias" ela comenta com a mesma dureza anterior, desvencilhando-se de minha mão.
      Fiquei calado por alguns instantes, ao seu lado. Eu estaria sempre ao seu lado, independente de um momento de grosseria ou atitude pouco pensada. Ela sabia disso. E os poucos minutos que passei ali ao seu lado parece que foram suficientes para que ela percebesse isto porque foi Clarice quem me abordou, então.
      "Olha, Gregor..." ela fez uma pausa e continuou em seguida "Desculpe por ter sido grossa contigo é que tá foda".
      "Não se preocupe, Cla... Mas me diga, o que houve?"
      Ela continuou encarando o monitor por algum tempo. Então, como se tivesse se enchido daquilo também, se virou pra mim e falou:
      "Hoje acordei meio deprimida, não sei. Me sinto em uma crise de algum tipo. Na real mesmo, não é nem de hoje. É como se fosse um processo que explodiu agora."
      "E sabe de onde isso veio?"
      "Não sei, nem ideia."
      Calamos os dois. Nossos olhares se cruzavam a três metros de nós, encaravam o nada. Senti uma tremenda angústia como se de fato dividisse a dor de Clarice. Mas eu não dividia. Eu dividia o nada. O nada que é invísivel e material. Quando tudo lhe é arrancado, você tem nada. Quando nada lhe resta, não é vazio. Ele ocupa todo o seu espaço, escapa pelos olhos, cobre os ouvidos, fecha a traquéia e pára o coração. É tão sentimento como o amor ou o medo. Não costuma ser definitivo, mas uma vez que se experimenta, ele nunca se vai, porque há sempre uma parte em nós em que nada fica. Quanto menos você tem, mais espaço você consegue e esse conflito é constante. É difícil viver com o próprio nada já que queremos e buscamos tudo. Buscamos anular o nada, mas como uma arma, o nada só ganha cores dependendo de onde se aponta e da pressão sobre o gatilho. Portanto, é fugaz: quando o gatilho é pressionado e ele ganha suas cores, ele deixa de ser nada e se torna algo. Nada não é bom, tampouco tudo é. Algo é melhor, menos absoluto e dogmático. Há algo em tudo e em nada. É uma medida tão criteriosa e precisa que algo deveria ser uma unidade de base para a grandeza da quantidade de matéria e imatéria, ou usado como uma lente. Dependendo da direção que essa lente aponta, mudam-se as quantidades e os valores. Algo, como tudo e nada, é adimensional. Mas tudo e nada se perdem em valores infinitos, positivos e negativos. O algo pondera.
      Passei a mão nos cabelos de Clarice, beijei seu rosto e deitei em seu ombro, acariciando a sua mão.
      "Você sente alguma coisa?", perguntei.
      Clarice manteve-se em silêncio e parou de se debater. Clarice ponderou.
      "Estou me esforçando para isso. Mas sinto um desejo, uma sensação de me livrar dessas restrições.", ela me respondeu calmamente.
      Eu não a respondi. Apertei sua mão contra a minha e a deixei ali, voltando para o meu trabalho.

      Clarice, você não pôde notar naquele momento, mas o que você percebeu como momento da explosão de um processo foi o momento que você pressionou o gatilho no nada. Algo já estava em processo e mesmo que eu não pudesse dizer nada para ajudá-la, sequer precisei tentar fazê-lo, você já estava caminhando. Eu não fiz nada, você fez algo e fiquei tão feliz porque o algo não é instantâneo, mas já é o algo. E leva tempo, Clarice. Também sinto minhas crises me escapando pelos olhos, cobrindo meus ouvidos, fechando minha traquéia e parando meu coração, assim como você. Sei como você se sentia, apesar de não ter sentido em seu lugar. E naquele momento eu percebi que você já estava em algo e isso me tranquilizou. É como um acalanto. É reconfortante saber que alguém que amamos tanto conseguiu encontrar o algo, ainda que todos nos perdamos vez ou outra. Clarice, você já estava em algo e em algo agora está. Suas cicatrizes deixam marcas em todos nós, tenho suas cicatrizes invisíveis em mim. E sei que você tem as minhas. E deixamos cicatrizes e marcas em tantas pessoas que não percebemos que as cicatrizes são lembranças de que nada aconteceu, mas que já passou. E as cicatrizes que recebemos são lembranças que não estamos solitários. Às vezes você vai se sentir sozinha, mas jamais estará solitária.

      Olhei para trás e Clarice estava olhando mais uma vez para o nada. Em seguida, desvencilhou o olhar, o repousou em mim e sorriu. Clarice tinha algo e subitamente, ela o sabia.

Acidentes

      Minhas questões sempre foram demasiadamente humanas, mas não físicas ou materiais. Demasiadamente humano, assim como somos e nem sempre possamos admitir. Sempre me interessei pelas falhas, pelas pequenas belezas acidentais, pelo acidente de viver e morrer, adoecendo e sarando de amores, fugas, tempestades e gripes. Pela pequena morte que nos aguarda, pela pequena vida que surge. Essas miniaturas todas, coexistindo sem saber se de fato existem.
      Devo estar ficando louco, mas recentemente fiquei extremamente interessado em acidentes de carro. Mais especificamente, atropelamentos. A súbita interrupção de uma pessoa, de uma vida. O súbito momento que o motorista não viu aquela pessoa atravessando a rua ou simplesmente cruzou o sinal vermelho e atingiu alguém. O rompimento do silencioso pacto entre motoristas e pedestres, a violação instintiva das regras e da vida, a destruição simples de uma vida igualmente tão simples quanto complexa. Alguns instantes entre a pura ignorância da existência para uma ligação emocional tão forte. Instantes com o tempo de um choque; um contato tão violento que rompe a carne, tinge o metal, encharca os olhos e turva a visão. Você consegue ver a beleza disso tudo? Não desejo atropelar ninguém, nem desejo a minha morte, sequer aprecio observar atropelamentos alheios, não se trata disso. É apenas dado fato que subitamente considero fascinante, de extrema beleza, que me causa comoção. Me parece simplesmente poesia. Não se trata da morte ou dos aspectos negativos. É comovente como isso pode acontecer com tantas coisas ao redor, tudo torna-se suspenso. Ninguém entende muito bem, todos temem por encarar a própria mortalidade ali, num pobre coitado. E pouco depois, se foi.
      E essa poesia acontece sem ninguém esperar, sem preparativos, rituais ou expectativas. É uma poesia pura.
      Note que não estou citando suicidas, maníacos ou pervertidos. Considero-os dentro de suas próprias categorias, longe desta. Esta trata-se da delicadeza da carne e dos ossos em direta justaposição ao peso das máquinas e do metal. O acaso violentando mutuamente carne e metal, sacralizando culpa e redenção. Há uma beleza tão abstrata nisso que após o baque é possível deitar sobre o silêncio que toma o lugar. Um silêncio tal qual se todos, naquele instante, tivessem contato com a poesia e não conseguissem mais exprimir as palavras usuais nem os ruídos rotineiros. Nos admitimos humanos para então apenas sê-lo mais uma vez, inconscientemente.
      Todos os sons voltam e a poesia termina. Há apenas um corpo no chão, um homem culpado atrás do volante e uma multidão confusa sobre a situação.
      A confusão é justa. Muitos somos os acidentes de uma relação e sempre buscamos o controle sobre todas as etapas a seguir. É realmente confuso quando percebemos a miniatura das coisas. Quando percebemos em um único instante que o choque entre gente e carro, carro e chão, chão e gente foi apenas uma forma e exibição extremas do contato e ligação que há entre tudo e todos, constantemente em movimento ainda que parecessem imóveis e distantes. A física quântica e algumas religiões colocam isso, mas só conseguimos perceber isso através da poesia ocasional que estremece nossas bases.
      E ironicamente, apesar do livre e constante contato, mesmo em um atropelamento, nós jamais nos tocamos. Permanecemos como somos, todos ligados entre si, seja gente, seja pedra. E sempre distantes uns dos outros, sozinhos. Do nascimento ao fim da vida.
      Talvez a maior razão da dificuldade de nos admitirmos humanos. Porque dói.

20091012

Um método

     Os fatos jogaram contra mim. Me vi subitamente sem escolha do que fazer, pra onde ir, o que escolher. Rodei em meu pensamentos, recolhendo-os por aí. De tudo o que havia ficado para trás. Do tanto que deixa-se pelo caminho porque pesa, pesa, pesa, pesa o corpo e a alma e coração. E das ganas de gritar para exprimir só ficou o lento mastigar dos pensamentos. Queria exprimir para não explodir. Mas não explodi afinal.
     Não soube dizer de quem foi a culpa. É fácil expiar a própria culpa e ignorar o outro lado. Tão fácil quanto supervalorizar os sentimentos alheios e mergulhar em culpa e tristeza. Talvez sejam extremos. Para mim, só servem para delimitar os limites razoáveis de ação. Passados os extremos, ainda me questiono se encontrei a razão.
     Quando eu a abordei e questionei a razão de tais atitudes por parte dela, recebi o olhar daquele que encontra conforto em culpar os outros por seus problemas. Não consegui reagir. Não posso conversar ou contra-argumentar com algo assim. Todos temos o nosso tempo para amadurecer e refletir. Era o meu tempo, não o dela. Não era justo. Me despedi e cada um saiu para seu lado.
     Alguns passos depois, parei e fiquei observando Camila se afastar. Ela caminhava sem muita pressa ou ambição, claramente imersa em seus pensamentos mais uma vez. Ela andava e em um dado momento, olhou para qualquer coisa que a fez quase se virar para mim, mas ela não me viu. E seguiu seu caminho. Vi que dentro de alguns passos Camila iria desaparecer em uma esquina, por trás de um grande muro. Nesse momento, nesse preciso momento, me virei e caminhei na direção oposta.
     Me questionei a razão daquela atitude, em seguida. Me questionava: a separação era inevitável. Por que você desviou o olhar antes do fim?
     E rapidamente encontrei a resposta. Quando eu desvio o olhar, eu mantenho a pessoa. Eu mantenho a minha segurança e meu senso de realidade. Eu sou o parâmetro, eu escolhi quando não veria mais a pessoa. Quando a pessoa se afasta e desaparece e isso está fora do meu controle, fico desamparado porque fiquei sujeito ao mundo, aquele instante, aquela imagem tão fugaz me foi retirada. Isso pode acontecer de maneira brusca, em casos de tragédias ou acidentes, mas ali, ali seria uma maneira tão gentil para isso, como já fora tantas vezes.
     Isso que eu percebi me fez sentir alguma contentação pessoal, uma espécie de alívio em perceber minhas limitações naquele momento. Um alívio porque me senti humano em meu sentimento, igualmente tão sincero quanto egoísta. Ainda assim, isso dificilmente se caracteriza um método.
     A distância é muito mais difícil quando suas memórias são levadas de você, na sua frente, sem pressa ou discussão. E acidentalmente, encontrei esse método de manter uma parte dela ali comigo.

     No entanto, concordo que há mais de um método por aí.

20090407

Uma tarde qualquer

      As marcas do reflexo da luz no teto formam desenhos abstratos da mais simples beleza. São marcas refletidas por carros e sombras de pedestres, que se projetam oscilantes através das pequenas frestas da janela em um dia ridiculamente quente. Os dedos de Camila brincam delicadamente com meus cabelos e sinto sua respiração suave refrescando meu rosto enquanto ela lê um livro, que segura com a outra mão. Olho para cima e vejo seus olhos castanhos compenetrados nas linhas de Javier Marías. Estico um braço e acaricio seu rosto e seus cabelos. Ela sorri e me lança um olhar quase tímido.
      Me viro de lado e me coloco em uma posição semi-fetal sobre suas coxas, encontrando uma área incrivelmente confortável ali. Poderia cochilar facilmente sobre ela.
      "O que você quer almoçar?", ouço sua voz.
      "Eu falei que faria o almoço hoje", respondo após uma pausa, murmurando de olhos fechados, quase dormindo. Houve algum silêncio.
      "Então... O que vamos almoçar, Gregor?" ela questionou, rompendo o silêncio com um sorriso irônico que não pude ver mas se fez ouvir. Fingi dormir.
      "Gregor?"
      Eu dormia.
      "E o meu almoço?" ela questiona enquanto coloca o livro ao seu lado.
      "Ssshhh..." respondo com preguiça.
      Ela então apertou meu nariz, bloqueando minha respiração e o puxou com alguma determinação. Dei de ombros. Ela então desistiu de meu nariz, acendeu um cigarro e voltou para o seu livro. Espiei pelo canto do olho e Camila estava realmente lendo mais uma vez.
      "Ei", falei me levantando e sentando ao seu lado "não era pra você desistir assim de mim!"
      "Se eu soubesse que almoçaria um Marlboro vermelho teria comprado pelo menos umas maçãs pra acompanhar" ela respondeu sem mover os olhos.
      Comecei a rir. "Que tal umas abobrinhas recheadas?"
      "Abobrinhas? Não tem uma bisteca de porco bem suculenta?"
      "Bisteca eu acho que não... Tinha bacon mas ele fugiu com o Babe, o porquinho atrapalhado, semana passada", comentei.
      Ela desviou a atenção do livro e me olhou com cinismo, refletindo o meu próprio pós-piada-do-Babe.
      "Sério mesmo, foi um negócio emocionante!" falei com a expressão mais séria e verdadeira do mundo. E finalizei "Mas deixaram as abobrinhas para trás. Por isso ofereci."
      "As abobrinhas estão ótimas pra mim", ela respondeu.
      Levantei e antes de sair do quarto, já na porta, parei e me voltei para Camila.
      "Você as quer de alguma maneira especial, Cá?"
      Com os olhos baixos no livro, ela me repondeu.
      "Mal passadas, por favor." esboçando um sorriso.
      "Sangrando!", respondi energeticamente.

20090406

Cristina

      Cristina é uma mulher inteligentíssima, criativa e divertida. Seu rosto não é delicado ou lindo e tem um corpo mais cheio que os padrões impõem atualmente, mas seus atributos não físicos são suficientemente desejáveis a ponto de homens que se deixassem conhecê-la diriam que Cristina é uma mulher bonita. Parte disso é o seu sorriso espontâneo e sincero que no mínimo atrai curiosos para saber o que mais há por trás dessa mulher de aparência um pouco desleixada e olhos tão brilhantes.
      Ela já teve alguns namorados e sai com este rapaz de porte médio e ideias idem. O tipo de cara que ela sai porque não suporta a ideia de estar sozinha, ainda que tantas pessoas estejam ao seu redor e uma parte delas tenha afeição por Cristina. Ela não suporta estar sozinha.
      Sua carência é tamanha e infundada que Cristina dorme com muitos homens que exprimem qualquer simpatia por ela. Ela não o faz por um real desejo por todos aqueles homens, mas apenas porque Cristina não pode ficar sozinha com si em momento algum e como uma espécie de gratidão por aquela faísca de atenção, Cristina lança-se sobre estes homens com intensidade e tristeza, gozando um afeto vazio e esperançoso, falhando miseravelmente na tentativa de suprir o que parecem necessidades cotidianas mas são simplesmente atos falhos na busca do amor próprio.
      Ela não vai encontrar jamais o seu amor próprio em fodas esporádicas com homens que sorriem em sua direção porque tal carência é destrutiva e Cristina tem tanto controle em sua inteligência racional que não é impossível ficar perplexo com a fragilidade de sua inteligência emocional. É questionável falar em uma inteligência emocional já que a razão jamais encontrará formas de exprimir a emoção com propriedade e justiça mas declaro assim por algum comodismo.
      Outra noite, encontrei Cristina em um bar e ela me recebeu sorrindo e carinhosa como sempre. Ela estava com alguns amigos e todos bebiam seus copos de cerveja enquanto conversavam animadamente. Me uni ao grupo e invariavelmente conversava mais diretamente com Cristina. Notei que após algum tempo, ela se oferecia para mim sem pudores e assim sendo, me mantive neutro às suas investidas pois não sentia igual atração por ela, simplesmente não me interessava e acredito que de alguma forma Cristina percebeu pois senti alguma irritação em seu olhar.
      Ainda assim, de repente Cristina me beijou e após o beijo, me afastei um pouco dela e falei olhando em seus olhos um pouco embriagados.
      "Acho que você confundiu um pouco as coisas, Cristina."
      "Oh, Roberto..." ela parou por um instante e continuou, "desculpe... não queria deixá-lo constrangido nem nada, só achei que você também estivesse a fim..."
      "Não precisa pedir desculpas, você agiu como achava ser correto, não há nada de errado nisso."
      Ela sorriu e voltou para os assuntos na mesa, de uma certa maneira me evitando. Não podia fazer nada já que isso é algo dela, somente, e senti que qualquer tentativa de retomar uma conversa com Cristina para deixar claro que pouco daquilo me importou seria mal interpretado novamente.
      Isso ficou mais claro pra mim quando Cristina passou a investir em outro amigo que dançou uma música com ela logo após nosso beijo e subitamente ele tornara-se seu foco. Sabia que ele não era o cara pra ela e provavelmente ela também. Ele já não estava tão sóbrio e não estava exatamente interessado nela, mas ela investia no rapaz com um interesse pessoal e inconsciente. Minutos depois, ela o beijou e não foram muitos minutos até que eles transaram no banheiro do bar.
      Cristina voltou a mesa com ele; o rapaz ainda era carinhoso com ela na medida do alcoolismo, mas ela não podia perceber aquele ato de afeto de uma outra pessoa. Cristina apenas conseguira novamente perceber o vazio daquilo tudo. Nesses momentos sempre me preocupo com Cristina porque sua desolação é tal que muitas vezes acredito que ela pode procurar o alívio com um tiro na própria cabeça. Seria uma ação tão extrema e estúpida, mas me entristece perceber que isso é tão plausível e cabível em suas ações que prefiro pensar que Cristina encontrará todo aquele amor que ela tem em si e perceberá como é auto-suficiente de tantas maneiras e, assim, ela poderá encontrar alguém para se entregar de verdade, não por gratidão ou por falta de correspondência pessoal, que tudo aquilo não passa de um somente si.
      E Cristina não mais lutará contra seus próprios fantasmas porque ela perceberá que é humana e tudo bem. E de todas as condições nojentas e tristes e possíveis, essa é a única verdadeiramente impossível de se alterar, e que isso a obrigaria a viver em mutação, com variações de humor e pontos de vista, entre a segurança e a insegurança de si e de seus atos, com alegrias reais e tristezas inexplicáveis, com otimismo e desespero, com realidades internas, com o inconcreto da vida, com a falta de chão, os frios na barriga, a impureza do ar, o brilho opaco das estrelas, os olhares indiferentes, rir até chorar, com contas a pagar, variações climáticas e com todas, todas as outras pessoas na mesma condição miserável de seres humanos, por todos os dias, até o fim da sua vida.

20090216

Vídeo: "Katie's Tea", Camille


"Katie's Tea" Experimental Video from Demétrius Daffara on Vimeo.

Eu e Diego produzimos este vídeo com a ajuda de nossa amiga Annelise.

A história da idéia é mais ou menos a seguinte: eu e Diego já produzimos experimentações com light art há algum tempo, mas até então toda incursão era feita com fotografias de longa exposição. Um dia no ano passado produzíamos algumas dessas fotografias utilizando o reflexo da luz em uma lente de uma outra câmera, que causava um efeito bonito e colorido, ainda que os pontos de luz que tínhamos em mãos fossem monocromáticos. Algumas fotografias depois, veio a idéia de fazer um vídeo e fizemos um meio que aleatoriamente. Assistindo ao vídeo, que já teve um efeito muito legal, colocamos para tocar uma música qualquer que eu tinha no celular. Em muitos momentos o vídeo sincronizava com a música e era uma coisa sensacional. Em seguida, decidimos por uma música, "Katie's Tea" da Camille, e gravamos um novo vídeo.

Não houve ensaio nem nada. Colocamos para tocar alguns instantes do final da música anterior (uma de Beethoven) e quando a música começou, deixamos a coisa tomar forma por si só.

O resultado é o vídeo acima. Houve até uma interferência durante a gravação, quando um SMS chegou em meu celular e interrompeu a música por dois segundos. Mas o vídeo está integral, com uma única alteração: sincronizei o áudio da música com maior qualidade sobrepondo o áudio que utilizamos como guia no dia da gravação.

Espero que gostem.