Uma semana dali, resolveram morar e criar a criança juntos.
A gestação fora gentil mesmo sob o rigoroso verão em que ela ostentava tamanho ventre. Não ganhara tanto peso, era uma dessas grávidas com uma composição esguia e pernas finas, à exceção da barriga que crescia tornando-a um pouco desengonçada até, mas muito bonita em toda essa estranheza.
Ele trabalhava até as cinco da tarde em um escritório na cidade, motivo pelo qual os amigos o chamavam de "yuppie" em provocação às camisas engomadas, gravatas apertadas e sapatos engraxados que ele subitamente teve de adotar em sua rotina. Comprou um carro e passava as horas no escritório pensando na sua família, e assim sempre chegava ao final da tarde sorrindo, quando ia para casa. Em um desses dias de volta do escritório, abriu a porta e viu um copo de água caído no chão e sua mulher respirando rápido e pesado enquanto secava o suor com lenços retirados de uma caixa de Kleenex ao seu lado. Os poucos instantes que ele levou entre abrir a porta e entender o que aconteceu foram seguidos por uma injeção de adrenalina de um casal tão jovem e inexperiente correndo para o hospital mais próximo.
Nascida no primeiro dia de outono, a menina assim fora chamada pelos pais: Outono. Nome esse que, no escritório, tornara-se algo de uma piada entre seus colegas, já que ele era o único yuppie de alma livre que eles conheciam.
E assim, Outono crescia. Não que seus pais fossem perfeitos, mas definitivamente era um lar amoroso e uma família feliz.
Mas mesmo após os vinte e poucos, Outono, talvez por influência de seu nome, talvez por coincidência de caráter, é um pouco melancólica em seus atos. Não triste realmente, apenas nunca muito ensolarada, tal qual uma tarde de outono em que as folhas caem e são carregadas pelo vento frio que anuncia o inverno que se aproxima.
Na iminência deste inverno, Outono vive. Tem prazeres em pequenas coisas e é uma leitora ávida por novidades. Seus pais, filhos de Gaia assumidos, introduziram à Outono a vida e suas repercussões sob a ótica da Mãe Terra. Outono, por sua vez, buscou no Budismo, no catolicismo ortodoxo e no Hinduísmo as suas respostas e direções. Tamanha mistura de influências permitiu à garota desenvolver uma visão de mundo que remete ao espírito livre que seus pais sempre buscaram. À sua maneira, Outono seguiu os ideais de seus pais. Sua alma alinhada à sua cabeça e, principalmente, ao seu coração.
Tem amores incondicionais e ama as pessoas por tão pouco, quase nada. Pequenos gestos, sorrisos e direções eram suficientes para trazer um frescor aos anseios de Outono, mas a garota parecia não encontrar luz própria, por isso sentia-se refrescar com a luz dos outros. Apesar de inofensiva, essa melancolia conseguia exercer um certo efeito em sua personalidade.
Essa espécie de desgosto pela vida, como se não houvesse ladeira acima, funcionava como um corrimão, sempre ali, apoiando-a, não a permitindo mudar.
Certo dia, almoçava em um restaurante. Lia um livro indicado por uma colega, o qual estava detestando. Foi quando ouviu um ruído.
"Pssiu."
Levantou os olhos do livro e viu um rapaz esbelto, de rosto muito jovem e olhos atrevidos a encarando, com seu prato ainda intocado nas mãos que ao conseguir sua atenção, prosseguiu:
– Você não deveria comer sozinha. É muito deprimente. – disse, puxando uma cadeira e se sentando à mesa de Outono.
Ela ficou observando o rapaz pegar um guardanapo de papel e colocar sobre suas pernas, com todo o cuidado. – Posso me sentar aqui? – ele concluiu, inclinando-se e colocando o cotovelo na mesa, apoiando a cabeça na base recém-formada. – Prometo que sou boa companhia, no duro!
Instigada pela atitude do rapaz e como estava realmente irritada com aquele livro sem graça, consentiu brevemente com a cabeça, enquanto recolhia o livro (idiota) em sua bolsa, dizendo:
– Você não tem modos?
O rapaz estancou. Ela continuou.
– Esse guardanapo. – apontou desinteressada com o indicador – É de papel. Só se coloca no colo quando o guardanado é de pano. Quando é de papel, deixa-se sobre a mesa mesmo.
Incomodado, ele olhou para o guardanapo e novamente para ela. Sorriu maliciosamente.
– Agora entendi porque você está almoçando sozinha. – encarou Outono por alguns segundos e começou a manobrar os talheres em seu prato.
Outono ficou um pouco indignada, mas retomou seu prato de onde deixara uma leitura atrás.
Comeram em silêncio por alguns minutos.
– Escuta, qual é seu nome? – ele perguntou, de sopetão.
– Outono. – ela respondeu, sem levantar os olhos.
Ele levantou o rosto. Espremeu os olhos encarando-a procurando o menor traço que a entregaria naquela mentira. "Quem se chama Outono?" pensou. Mas ela não esboçou nenhum sorriso, nenhuma olhadela para ver a cara dele diante dessa resposta inusitada.
Outono estava realmente acostumada. Dizia que não gostava nem desgostava do nome, era o seu nome e pronto. Ficava especialmente entediada quando alguém confirmava sua identidade, como se todo mundo mentisse para estranhos.
O rapaz, após desistir de ter uma resposta humorada, limpou a garganta e disse:
– Eu me chamo Tenório. Prazer.
Ela olhou pra ele. – O prazer é meu. – respondeu.
Continuaram almoçando em silêncio. Tenório terminara seu prato e se apoiava outra vez com os cotovelos na mesa, olhando para Outono.
Ela rolava uma batata para lá e para cá no prato há alguns minutos já. Seu ar desinteressado parecia tipo, coisa de garota bonita que se faz de entediada. Mas Outono sentia-se envelhecer e desprender a todo instante. Vítima consciente de seu próprio nome, algoz involuntário de seu próprio eu.
– Estou te incomodando? – Ele perguntou, alcançando um palito de dentes sobre a mesa e palitando-os com alguma descrição (mas não o bastante), se recostou à cadeira.
– Não, imagine. Desculpe. Me diz, o que você faz da vida?
Então Tenório falou um pouco mais.
– Estudo biologia, nasci e cresci por aqui, sou solteiro e não sei o que mais. Só isso mesmo, talvez. – concluiu, massageando a têmpora com dois dedos.
Estava muito calor, Tenório sentia as têmporas palpitar e uma ocasional gota de suor que descia por seu rosto até se soltar.
– Outono, você quer tomar um sorvete? – perguntou, segurando sua têmpora direita. – Estou morrendo de calor, é o que eu preciso, agora. Topa?
Outono já estava atrasada para voltar ao trabalho. Resolveu ir ainda assim.
Sentados em uma praça, Outono e Tenório tomavam um sorvete de chocolate. O clima continuava mais quente do que o ideal, mas felizmente eles estavam sentados à sombra, sem muita preocupação. As crianças corriam pela larga praça, os pais sentados em outros bancos. Algumas crianças estavam em bicicletas, apostando corridas ao redor de uma pequena lagoa com carpas. Outono observava a movimentação da praça com curiosidade.
– Sabe, Tenório, eu fico tão fascinada com as outras pessoas. É o tipo de coisa que realmente me faz me sentir feliz, quase realizada.
– Ah é? – Tenório estava um pouco atrapalhado com seu sorvete.
– Veja por exemplo aquela senhora do outro lado da praça. Quando chegamos, ela estava andando um tanto sem rumo, cabisbaixa, um pouco desolada.
– Cê fala aquela senhora louca ali?
– Eu não sei se ela é louca. Eu sei que ela caminhava e caminhava e caminhava e sua tristeza parecia não ter fim, parecia carregar um grande martírio sobre suas costas, seus olhos tristes e baixos. Até que uma criança veio correndo em sua direção e lhe sorriu, com toda ternura. Tomou sua mão calejada e colocou-a em seu rostinho sorridente, então beijou a palma da mão da senhora e voltou para brincar em seguida, rindo, satisfeito. – Outono estava com os olhos marejados, enquanto falava. – Aí sabe o que ela fez, Tenório? Sabe o que essa mulher que você chama de louca fez? Ela sorriu, emocionada. Seus olhos brilhavam como dois diamantes. Então, ela soprou beijos para o menino que brincava, ainda olhando para ele e então sentou-se naquele banco, sorrindo, feliz, como que realizada.
– Então… Ela é louca mesmo?
– Não, Tenório. Ela é livre. Ela é feliz. Sei que parece que não há nada de diferente na vida dela antes e depois desse ocorrido, que é muito insignificante. E é mesmo, por que não? Mas eu vejo como se ela estivesse solta, sem direção e de repente, percebeu que precisava de tão pouco para ser feliz. E está feliz. O carinho e o beijo que ela recebeu em sua mão ficará ali, como parte dela até o fim da vida. – Outono continuava falando, com os olhos distantes e empolgada como Tenório não a viu durante todo o dia. – E isso me fascina tanto, ter visto isso, presenciado e percebido isso. Percebido a alegria, tão sólida quanto o chão em que pisamos. Sentir o amor puro, verdadeiro e do coração, sem maldade, sem luxúria, só essa energia boa, real, sabe? – seu rostou se contraiu como se fosse atingido por alfinetes invisíveis. – E então, o que me fere é perceber que só sou feliz assim, com a felicidade dos outros. Não sinto inveja das outras pessoas, todos devemos ser felizes, sem dúvidas. Mas talvez eu sinta… frustração, entende?
Tenório ouvia com atenção, seu semblante preocupado e rijo ostentavam seus olhos pálidos, esvaziados na procura interna pela compreensão e reflexão. Seus lábios entreabertos pareciam medir palavras que não tinham razão em ganhar som. Apenas acenou brevemente com a cabeça, quatro rápidos movimentos em afirmação à pergunta de Outono.
Ela passou as mãos pelo rosto e respirou fundo.
– Às vezes, parece que é uma maldição, sabe? Se eu não consigo encontrar a felicidade em mim, é porque eu sou Outono. – Ela deu uma risada nervosa. – É ridículo! Parece ainda mais ridículo em expressar isso a alguém, mas eu sinto que sempre volto a isso: a melancolia passageira de uma estação como motor de ser. O que eu sinto é: se um mantra utiliza-se de determinados sons pois aqueles sons possuem a vibração certa para abrir chakras, iluminação, felicidade… parece que vivo sob a sombra de uma vibração que está ligada ao que chamamos de outono: um período que precede o inverno. – Ela sentia seu coração acelerar e sua testa umedecer-se de uma fina camada de suor. Retirou um lenço de papel de sua bolsa e enxugou sua testa.
Apesar disso, nesse momento o sol já estava mais brando. O vento gentil balançava os cabelos castanhos de Outono. Tenório não transpirava e permanecia perdido em reflexões. Do outro lado do parque, a senhora tirara um pacote de seu bolso, um pacote com farelos de pão. Ela lançava os farelos na praça para os pombos afoitos. O rapazinho de outrora então corria entre as pombas em saltos e urros excitados, afugentando-as como se fosse um tiranoussauro e exercesse grande poder sobre as pobres criaturas que cruzavam o seu caminho. A cada salto em meio às pombas, um urro feroz levava aos céus dezenas de pombas desajeitadas, enquanto o menino gargalhava de prazer. A senhora fechava os olhos e ria com vontade, levando as mãos ao alto enquanto lançava o corpo para trás, erguendo os pés em excitação. Então, o menino olhava para a senhora em confirmação, corria e se escondia para novamente repetir o truque: os farelos de pão, o ataque do tiranossauro, o voo desajeitado das pombas e as gargalhadas mútuas. Um acordo silencioso se formou entre aquela senhora e aquele menino. Brincaram sem nada conversar por muitos minutos. E uma hora haviam de parar, fosse por falta de farelo de pão, por não restar mais fôlego no menino, pela extinção das pombas ou por um infarto na senhorinha. Qualquer motivo, banal ou não, poderia por fim àquele jogo. Porém, aquele momento vive e viverá, invisível aos olhos, na velha, no menino e na praça para sempre. O banco, as árvores e o chão, de todas as memórias que já possuem a todas que ainda terão: momentos como esse deixam rastros tão iluminados e positivos como a mais bonita oração.
Outono viu a senhora guardar o saco de pão e acenar para o menino em despedida. O menino, satisfeito, acenou para a senhora, deu meia volta e correu para junto de seus pais. A velha saiu da praça por um portão lateral. O menino sentou-se na areia e desenhava com um graveto. Em ambos, uma coisa estava clara: a felicidade era demais, transbordava seus seres e formava ondas coloridas por onde passavam.
Tenório também viu tudo isso, em silêncio. Tocou Outono em seu braço, olhou para seu rosto tão bonito e disse, um tanto rapidamente:
– Você se queixa de um problema quando sequer dá espaço à solução, Outono. Nenhuma tristeza é infinita, ninguém é infeliz por completo. Você buscou tantas teorias e explicações que nem sequer se permitiu ver o que é mais simples nisso tudo. No mundo, enquanto há outono de um lado, do outro é primavera. Enquanto um povo se prepara para o inverno, o outro aguarda o verão. E nós somos todos os lados ao mesmo tempo, você é. Se você é outono no nome, possui a primavera no coração.
Ao terminar, Tenório sorria vivaz, seus olhos abertos e brilhantes nos olhos de Outono. Sua respiração um pouco ofegante por ter falado rápido demais, mas já recuperando o fôlego. Era como um acrobata que após meses de ensaios, finalmente conseguia cair com segurança colocando os dois pés no chão e erguer os braços em finalização.
Outono o encarava de volta. Silenciosa, sentia desfazer. Era isso? Tão simples assim? Como em uma verificação matemática rigorosa, testava essa provável verdade tão simples a cada um dos seus anseios internos. Tirava a prova e se convencia, um a um, religiosamente.
– Acho… Acho que você tem razão. – concluiu Outono, com um sorriso ainda incerto, como quem descobriu o segredo do universo. Sentiu uma certa urgência, apertou a mão de Tenório em empolgação e pediu licença. Se desvincilhou e saiu. Tenório sorria.
Quando se deu por si, Outono estava no ônibus, a caminho de casa. Queria encontrar os pais e dividir com eles o que provavelmente eles já sabiam. Os pais sempre sabem, mas os bons pais deixam que os filhos descubram por si só.
Mas foi aí que aconteceu. Sentada no banco do ônibus, no corredor, Outono olhava pela janela distraída. Sentiu um calor em sua mão, trazendo-a de volta. Era a mão de uma menina de cerca de seis anos tocando sua mão para chamar-lhe a atenção. Sorria com inocência e ternura, banguela de quatro dentes distintos, formando pequenas janelas em um sorriso tão sincero. Era um pouco estrábica, usava óculos de leitura, seus óculos eram grandes, de uma armação lilás translúcida. Tinha diversas pulseiras de plástico em seus braços e os cabelos um pouco desgrenhados. A mãe aguardava a chegada do ponto de ônibus em que desceria, segurando a menina pelo pulso e, distraída, perdia aquele momento em que sua filha, em um breve malabarismo, tirava uma de suas pulseiras coloridas e entregava para Outono. A pulseira era amarela. Ambas sorriam muito, a menina estava completamente encantada. Outono aceitou o presente com um certo desconforto de quem não sabe o que fazer mas oferece o coração em gratidão. Sorria de volta à menina, tão inocente e sábia em suas considerações e ela, tão adulta em sua forma buscando entender a felicidade que para a menina não era segredo nenhum.
A menina se despediu em acenos exagerados enquanto era levada para fora do ônibus pela mãe. Nos instantes em que o ônibus começava a seguir viagem, Outono viu a garota pela janela, saltitando e dançando ao redor da mãe que buscava qualquer coisa em sua bolsa.
Outono colocou a pulseira amarela em seu pulso e notou ali pequenas flores em relevo. Rodou o pulso observando a pulseira nos mais diversos ângulos, curiosa. Levantou-se e deu o sinal, descendo no ponto seguinte. O vento soprou sobre seus cabelos enquanto o ônibus se afastava.