20101223

Autocombustão



    O carro buzina lá fora. Carlos grita da janela de seu Corsa 99.
    – Vamos, Márcia! A gente tá atrasado pro cinema!
    Márcia arrumava-se rapidamente em seu quarto, de frente para um grande espelho atrás da porta. Subia nos sapatos de salto alto enquanto pendurava os brincos, alcançando em seguida o pó compacto que estava sobre a penteadeira. Aplicou um pouco de blush rosáceo sobre as maçãs do rosto e colocou os cílios postiços. Realçou os lábios com um batom de um vermelho apagado e estava pronta. Aproximou-se do espelho e escancarou os dentes como um cão, analisando se havia algum resquício de batom, para em seguida pegar a bolsa deixada sobre a cama.
    Márcia desceu as escadas rapidamente e chegou ao carro. Abriu a porta e entrou.
    – Estou pronta! Vamos? – disse virando-se para Carlos.
    Carlos não sequer olhou para o lado, apenas virou a chave ligando o motor e colocou o carro em movimento.
    – Você sempre se atrasa. Espero que cheguemos a tempo para o filme.
    – Desculpe.
    – Márcia, não é questão de desculpas. Você sempre pede desculpas, mas numa outra oportunidade novamente se atrasa.
    – Por Deus, Carlos. Não é assim.
    – O Gregor já deve estar lá. Marcamos com ele às 16h e saímos de casa quinze minutos depois do horário marcado. Ele vai ficar puto.
    – O Greg sempre se atrasa também.
    – Isso é problema dele, Márcia. O nosso é chegar no horário, como se algo assim fosse possível. – disse a ela, em um tom agressivo, acima do ideal.
    Dizendo isso, Carlos alcançou um cigarro do maço e um isqueiro que estavam sobre o painel do carro, o acendeu e soltou uma densa nuvem de fumaça. Márcia permanecia em silêncio olhando para baixo. Em seguida, abriu sua bolsa e retirou para si um cigarro. Carlos olhou rapidamente para o lado e com o mesmo isqueiro que utilizara, acendeu o cigarro para ela.
    – Obrigada. – disse ela, com a voz baixa.
    – Pomba, Márcia. Não gosto de ficar puto contigo, mas eu não consigo evitar e acabo falando demais.
    – Você errou no tom, mas você tem toda razão. – falou Márcia olhando para ele.
    Carlos olhou para o lado com algum estranhamento. – Você não costuma dar o braço a torcer tão facilmente.
    – Às vezes as pessoas mudam. Preferiria que eu começasse a gritar contigo quando você sabe tanto quanto eu qual é o ideal da situação? – perguntou Márcia, tragando seu cigarro em seguida.
    – Não, não, em absoluto. – respondeu Carlos, enquanto refletia sobre aquele súbito momento e distraidamente coçava o braço e, depois, o pescoço.
    – Olha, tem uma vaga ali! – irrompeu ela apontando para um espaço vazio entre dois carros.
    Carlos lançou a bituca pela janela e estacionou o carro com leveza. Ele sempre fora um bom motorista, do tipo de pessoa que você rapidamente percebe sua habilidade ao volante não em detrimento aos outros motoristas, mas por ser um motorista acima da média. Felizmente ele nunca se gabara de tal qualidade, ele simplesmente dirigia.
    Desceram do carro e caminharam até o cinema em silêncio. Carlos olhou para os horários das sessões do filme e em seguida para seu relógio de pulso, conferindo se o atraso tinha sido prejudicial. – Chegamos a tempo! – completou.
    Ela olhou para Carlos sorrindo, passou a mão nos longos cabelos castanhos e olhou ao redor. 
    – Onde está o Gregor?
    – Ainda mais atrasado do que nós! – ele disse rindo. Ela riu também. – Vou comprar os ingressos, por via das dúvidas.
    Enquanto comprava os ingressos, ela apanhou seu celular da bolsa e ligou para Gregor. – Oi Greg! Onde você tá?
    – Estou chegando aí em oito minutos. Já começou o filme?
    – Não, não. Fica tranquilo. O Carlos já tá comprando os nossos ingressos.
    – Ah. Puxa. – Gregor parou um instante. – Obrigado!
    – Não por isso. Nos falamos já já.
    – Até logo!
    Ela desligou o celular e olhou em direção a bilheteria. Carlos já estava voltando, com os ingressos na mão, sorrindo.
    – Conseguiu falar com ele?
    – Consegui sim, ele está chegando.
    – Ah, Greg… Vamos fazer assim, você quer pipoca?
    – Pipoca? Não, obrigada. – ela respondeu ainda segurando o celular com a mão esquerda, olhando distraidamente para um cartaz de uma das próximas atrações. 
    – Tem certeza?! Eu vou ali comprar. Não consigo ver um filme sem pipoca. Vamos lá, eu compro um chocolate pra você.
    Chegando à bombonière, ele pediu sua pipoca, refrigerante e um chocolate que estava na vitrine. A voz de Gregor distraiu a ação.
    – Cheguei a tempo? – ele perguntou ao casal, animadamente. Sua testa estava molhada de suor e seu ar, bastante cansado, mas Gregor exibia um largo sorriso em seu rosto. 
    – Bem a tempo! – respondeu Carlos. 
    Carlos deixou a pipoca sobre o balcão e apertou vigorosamente a mão de Gregor. Em seguida, Gregor beijou o rosto de Márcia, abraçando-a em seguida. – Como vão? – perguntou.
    – Bem, muito bem. A Márcia nos atrasou um pouco mas ainda assim chegamos antes de você, cara! – ele disse em tom de brincadeira. Márcia o olhou indignada. Gregor olhou para Márcia percebendo sua irritação e sentiu-se um pouco incomodado.
    – Eu sou o rei dos atrasos! – desconversou. – Escutem, vocês querem entrar já? Além de pegar um bom lugar, gostaria de me aproveitar dos benefícios reconfortantes do ar condicionado da sala.
    – Quem mandou vir correndo? – Carlos provocou.
    – Se eu não venho correndo, eu não chego!
    Márcia já começara a caminhar em direção à sala sem falar, consequentemente atraindo os dois rapazes atrás de si.

* * *

    O filme era uma agitada história policial, com carros em alta velocidade e explosões regulares. Márcia sentia-se profundamente entediada, ora pela película em si, ora pela irritação com o noivo. Sem grandes movimentos, inclinou-se para a esquerda, ao ouvido de Carlos e sussurrou. – Volto já.
    Levantou-se, passou em frente a Gregor, saiu da sala. Foi em direção à rua com a bolsa a tiracolo, parando no alto das escadas que levava à calçada em si. Apanhou um cigarro da bolsa e acendeu com um fósforo. Batia o pé no chão, rapidamente, extremamente nervosa. Observava os arredores, todos os carros que passavam, as pessoas passando, o balançar das árvores. O vento soprava seus cabelos e tocava seu rosto com gentileza. Uma mão tocou seu ombro. Era Gregor.
    – Posso te acompanhar? – ele perguntou.
    – Sim, claro! Você quer um cigarro?
    – Não, estou com o meu aqui. – ele falou, alcançando um maço em seu bolso e acendendo um cigarro em seguida. – Que filme bobo, né?
    – Sim, insuportável.
    – Não sei se fico mais impressionado com as atuações geniais ou com a facilidade que tantos carros explodem na sequência. Você conseguiu ver a marca dos carros? Porque eu sei que tipo de carro eu não quero comprar: os de autocombustão.
    Márcia olhou para Gregor e riu um pouco, desviando o olhar em seguida, voltando a desatenção para frente, tragando o cigarro e soltando a fumaça em seguida, mas permanecendo em silêncio.
    – Tá tudo bem, Márcia? – ele perguntou olhando diretamente para as têmporas dela, que estavam úmidas de suor, apesar da temperatura estar bastante agradável naquela época do ano.
    Ela permaneceu olhando para o horizonte. – É que o Carlos me tira do sério! – ela disse com uma clara irritação em sua voz, voltando o rosto para ele, que a olhava calmamente. – Apesar de cobrar uma postura de mim e aparentemente me entender, ele simplesmente não consegue deixar um momento, uma única falha passar.
    – Você fala do negócio do atraso?
    – Sim, o atraso. Você acredita que ele falou aquilo? Precisava frisar quem causou a droga do atraso? Não chegamos antes de você de qualquer maneira? – ele consentiu com a cabeça. – Pois bem, qual a diferença? Note, não estou questionando quem atrasou a quem, eu causei o atraso, sei disso. Mas questiono a atitude de trazer isso, sem a menor necessidade, apenas pela provocação, sabe? – dizendo isso, Márcia percebera que seu cigarro já estava apagado e segurava apenas a bituca, lançando-a ao meio-fio e pegando mais um cigarro em sua bolsa.
    – Mas o Carlos é bastante brincalhão, não deve ter sido por mal, Márcia.
    – Essa não foi a primeira e nem sequer será a última vez que ele faz esse tipo de coisa. O Carlos simplesmente não sabe ficar quieto, em alguns momentos. E pensando bem, não é nem questão de provocação. É o fato dele ser inseguro e utilizar esse tipo de brincadeira inocente para deixar claro para si e para quem o ouvir de que a culpa é minha. 
    Enquanto Márcia falava, Gregor sentou-se ao primeiro degrau da escada e fez um gesto para que ela o acompanhasse. Ela sentou-se ao seu lado e continuou.
    – E não é só isso, e não só o Carlos. É tudo. São todos. Todos são assim, todos são egoístas e imperdoáveis, sabe? Que droga de mundo é esse, Greg? Você fica ao lado do seu noivo, dos seus amigos, de sua família. Faz de tudo para que todos fiquem bem, larga o que está fazendo para ajudar a quem for, no momento que for. E no momento, nos poucos momentos que você simplesmente precisa de de uma palavra amiga, um conforto, uma preocupação, eles viram as costas pra você e deixam você na mão. – Márcia começou a massagear suas têmporas, fazendo uma pequena pausa. Alguns fios de cabelo já estavam colados em sua têmpora devido ao suor enquanto falava e agora, começavam a se libertar novamente.
    – Você realmente precisa se acalmar um pouco, Márcia. Desse jeito você vai ter um treco daqui a pouco. – Gregor falou colocando a mão sobre o ombro de Márcia, massageando-a gentilmente.
    – Greg, não pense que eu sou mal agradecida ou acredite que apenas porque eu fiz algo pela pessoa, a pessoa deva fazer algo por mim. Não é isso, entende? Não é uma mera questão de troca. – dizendo isso, ela deixou as têmporas livres novamente. – É o simples fato de você saber que pode contar com alguém, ou se deixar pensar que esse alguém pode proporcionar surpresas, essas coisas, sabe?
    Gregor olhava atentamente para Márcia enquanto ela falava. Ela gesticulava muito e seus olhos estavam cheios d’água.
    – Aí, quando você faz algo errado, que desagrada ou simplesmente precisa de um pouco de ajuda, os outros, o Carlos, todos são incapazes de simplesmente perceber que todos erram ou que a outra pessoa precisa de ajuda. Eles só olham para si mesmos, o tempo todo. Ficam tão ensimesmados que não percebem todo o apoio que você já deu, cobram mais apoio e jogam na sua cara seus erros. – dizendo isso, ela começou a buscar em sua bolsa um pequeno pacote de lenços de papel. – Essa droga de nariz que fica sempre escorrendo. – ela secou seus olhos e limpou delicadamente seu nariz.
    Gregor observava a aventura de Márcia com o lenço de papel, com a cabeça apoiada em sua mão e seu cotovelo apoiado sobre sua perna. – Lembra quando nós nos conhecemos, que estudávamos juntos no ensino médio? – ele perguntou.
    – Sim, lembro sim. O que é que tem? – ela indagou ainda distraída com a coriza.
    – Você se lembra que você namorava esse rapaz, o Alberto Qualquercoisa? Como você era feliz ao lado dele?
    – Claro. E você namorava a minha prima, a Leila. – e colocou o lenço usado em uma pequena sacolinha plástica que carregava consigo para tal finalidade. 
    – Pois é… Lembra daquele dia em que todos viajamos para o interior e fomos àquele parque com um baita lago lindo em um dia super calmo?
    – Valha-me Deus, Greg, mas que suspense todo é esse? É claro que eu me lembro, eu me lembro de tudo daquela época.
    Gregor se levantou e se espreguiçou. – Pois bem, aquele dia foi um dos dias mais simples que já passei em minha vida. E ainda assim um dos mais divertidos. Eu me lembro de cada cor, de cada textura, de cada cheiro. – ele sentou-se novamente. – Eu tenho aquela imagem em minha mente com a força da mais bela pintura jamais feita.
    – Aquele dia foi mesmo incrível. Lembra que fizemos uma corrida com você e o Alberto de cavalos, nós nos ombros de vocês e aí vocês dois já tinham armado tudo e lançaram a gente no lago? Seus tontos! – dizendo isso, ela sorriu e deu um tapa amigável no ombro de Gregor. 
    Ambos ficaram rindo por algum tempo, diluídos em memórias. As memórias daquele dia ensolarado, o lago tal qual um espelho, as árvores lindas, vivas e verdejantes. As brincadeiras infantis de corrida, polícia e ladrão e esconde-esconde entre quatro jovens adultos sobre a grama verde e cheirosa. O piquenique confortável, as risadas, os sorrisos, as gargalhadas. A terra úmida próxima ao lago que envolvia seus pés descalços e a simplicidade de uma simples tarde, distante de tudo e todos. 
    Subitamente, Márcia voltou a si. – Mas e daí, Gregor? O que é que tem tudo isso?
    – Oras. – ele acendeu outro cigarro. – Nesses momentos, geralmente eu gosto de me transportar para os melhores lugares de minha memória e me deixar tomar pelas boas energias do que já passei.
    – Mas Greg… As coisas são diferentes hoje. – agora quem pegou outro cigarro em sua bolsa foi ela. – As coisas são completamente diferentes, aliás.
    Greg tragou o cigarro e soltou a fumaça lentamente. – Aí é que eu discordo. Por que elas são diferentes? Por que elas precisam ser diferentes?
    – Ué?! Porque eu mudei. Porque as coisas mudam. As pessoas mudam. Eu não namoro mais com o Alberto, mas com o Carlos, inclusive.
    – Mas me diz, você se veria casando com esse Alberto caso ele tivesse a pedido em casamento? Tanto faz se naquela época ou hoje em dia?
    – Não sei! Não sei… Como eu posso saber um troço desses, assim? – ela respondeu um pouco indignada.
    – Pensa bem. Você não continuou com o Alberto por uma razão. O tempo que vocês passaram juntos foi ótimo, mas uma hora, acabou. Com o Carlos, esse tempo não apenas está acontecendo como você quis seguir adiante, vocês vão se casar até, caramba!
    – Sim, eu sei.
    – Pois bem, Má, alguma coisa a fez pensar em largar o Alberto quando você terminaram e a disse para continuar com o Carlos independente desses ou quaisquer problemas. 
    – Mas… Droga, Greg, mas que droga. Eu amo o Carlos mas às vezes as coisas ficam… insustentáveis. 
    – Sinceramente, Má? Só você pode ser feliz, se fazer feliz. Ainda que você tenha escolhido ter ele ao seu lado para o resto da sua vida, ele precisa de ajuda para entender como você se sente e o que a agrada ou desagrada. Mas sem se deixar… Não sei? Vitimar? Não se deixe levar por esse tipo de ideia e se considerar uma vítima da situação. Só você pode ser agente da sua felicidade, ninguém mais. Você lembra com tanto carinho daquele dia porque você escolheu estar lá, naquele dia, conosco, brincando e se divertindo. Entende? – Greg terminou de falar e lançou a bituca no degrau ao lado de seu pé, extinguindo o cigarro com a ponta do pé. 
    – Má, você é feliz? – completou.
    Márcia permaneceu em silêncio, após as palavras dele e ficou novamente encarando o vazio, fumando, absorvendo, refletindo, ponderando. Por fim, acabou abaixando os olhos e viu o seu pequeno relógio ao redor de seu pulso delicado apoiado em sua perna. Levantou-se de sopetão lançando sua bituca em direção à rua.
    – Minha nossa! Já estamos aqui há quase meia hora!! Vamos voltar correndo, já passou da metade do filme!
    E ambos correram de volta para o cinema.

* * *

    Já próximo ao clímax do filme, onde o mocinho está prestes a resgatar a mocinha, montado em seu carro veloz e armado com a mais bela pistola, o cinema estava repleto de sons de tiros, explosões, barulhos de motor e ameaças do vilão. Carlos estava vidrado com toda aquela ação. A sala, iluminada apenas pelo reflexo da projeção das sequências repletas de adrenalina e tensão estava quase que por completo imersa nos rumos inesperados que o roteiro tomara, deixando todos sem fôlego, à exceção de Márcia.
    Márcia voltara um pouco desconexa. Não conseguia prestar atenção às sequências daquele filme, seus olhos encaravam a projeção mas buscavam visualizar outras questões. Sentia-se afligir sentada ali, no escuro, vendo um filme desinteressante, dos tantos que já vira ao lado de Carlos simplesmente porque são os filmes que ele gosta de assistir. Ela nem gostava tanto assim de cinema, afinal. E buscava em si as mais bonitas imagens para sentir-se melhor. Uma tentativa de acalanto próprio.
    Enquanto homens atiravam uns contra os outros na tela, Márcia sentia novamente seus olhos se encherem de lágrimas. Dessa vez, inclinou-se para a direita, em direção a Gregor.
    – Greg? – sussurrou. – Lembra quando naquele dia no parque nós subimos em uma árvore para ver o pôr-do-sol e quando anoiteceu, todos descemos, menos você porque você se lembrou, lá do alto que tinha medo de altura e levou quase meia hora pra descer e todos quase morremos de tanto rir?
    – Lembro, claro. – ele sussurrou de volta.
    – Greg… – ela apertou a mão dele contra a dela. – Eu era feliz naquela época, não era?