20080421

A Indefinição do Amor

      De tempos em tempos o ser humano se vê em questões que não há uma resposta. Há diversas. Nem todas são adequadas nem são inadequadas. São questões que dependem de cada pessoa, da experiência pessoal de cada um. Posso citar agora sem pestanejar algumas delas que você poderá responder com prontidão com base em seus preceitos científicos, religiosos, pessoais, políticos ou cotidianos. Qual o sentido da vida? Qual o sentido da morte? O que é a beleza? O que é moralmente certo? Quantas pessoas você vai amar na sua vida? Existe, afinal, o amor? São questões que não têm uma resposta definitiva. Sua resposta hoje não é exatamente a mesma de um ano atrás e nem será em seis meses. Ou em vinte minutos. Há alguns dias, em uma discussão entre xícaras de café sobre inabilidades, citei minha total incapacidade em lidar com o que eu acreditava ser uma das únicas certezas de nosso mundo, a Física, exceto claro, que a gravidade equivale a dez metros por segundo. O que isso significa eu não exatamente sei, mas ainda que eu não compreenda com clareza, está lá. E um rapaz disse que a única coisa que ele tinha aprendido na Física era que tudo dependia de um referencial e, mais que isso, levou essa lição para sua vida. Tudo depende de um referencial. E esse referencial é uma variável mutante, uma lente que ao se voltar para um determinado ponto, projeta automaticamente uma nova e diferenciada perspectiva. Particularmente, não gosto do termo pois sempre soa tão generalista, burro e já em tom de desculpas, mas é como dizem: É uma questão de ponto de vista. Veja você, leitor, como soa feio dizer "questão de ponto de vista" ou "mas é meu ponto de vista"? Não existe tal coisa na verdade. Ou ainda, existe e é redundante. Me desculpem os neutros ou fracos de opinião, mas qualquer coisa que você diz é seu ponto de vista, é a sua opinião. Eu quero dizer, não pode ser a opinião ou ponto de vista de mais ninguém, certo? É como quando se diz que não se discute religião ou política. Um absurdo, é claro que se discute religião ou política! Digo que não é educado fazê-lo em um primeiro encontro, mas superadas as formalidades, o que impede alguém de discutir tais assuntos? Provavelmente será uma discussão em vão, uma vitrina de pontos de vista que resultará em duas pessoas firmes às suas convicções, porém e aqui é onde eu quero chegar, com maior consciência das convicções alheias. É um tempo de tamanho egoísmo e valorizações unilaterais nos piores dos sentidos, impulsionados pela assepsia da moral que ainda me surpreendo ao me surpreender em como as pessoas não conseguem ver valor em olhar às outras e aprender com pessoas igualmente diferentes. Não defendo um esquecimento do ser humano como criatura única, mas a consciência de que o único é bom e entender o que torna a outra pessoa tão única só enriquecerá a sociedade. E esse referencial pode ser científico, religioso, pessoal, político ou social. Separadamente e todos juntos ao mesmo tempo. Além de inúmeros outros que são levantados ou derrubados em cada situação. A cada segundo.
      De volta às questões iniciais, há uma que eu gostaria de tentar responder aqui com você. A última questão, no caso. Existe o amor? É uma questão difícil porque remete a linhas fisiológicas, instintivas, filosóficas, abstratas e pessoais. Mais uma vez sobre os referenciais (prometo que deixarei isso de lado já), alguém solitário afirmará, de pronto que não existe. Outro, em um namoro feliz, já dirá com certeza que existe. E caso esse último sofra algum tipo de rompimento nesse relacionamento, se sentirá machucado e negará a existência de tal sentimento porque lhe é conveniente. E eu te pergunto, meu caro leitor: podemos negá-lo, mas será que ao fazê-lo, o amor realmente deixará de existir?
      Apesar de todas as possíveis referências e leituras, recentemente descobri que ele não deixa de existir e que ele realmente existe. Ainda abstrato, mas pude finalmente vê-lo em algumas linhas que li na semana passada de uma carta que jamais foi enviada, aparentemente. Linhas escritas por um grande amigo, o Gregor, não sei exatamente quando, pois ele não colocou uma data no papel. Há uns dez dias, Gregor tomou um avião e cruzou o Atlântico, deixando para trás um apartamento repleto de muitas cartas, anotações e alguns cadernos com textos e poemas que ele escrevia de vez em quando. Ele sempre gostou de escrever e apesar de nunca ter se profissionalizado como escritor, ele escreve muito bem. Profissionalmente, de certa forma, ele também escreve, mas com tintas diferentes. Conta outras histórias. No papel, as histórias são sobre ele, quase sempre. Como um constante reprocesso de si através de papel e caneta esferográfica preta. Quando não são sobre ele, são sobre ele de uma outra forma. Lembra-se do que eu o disse? Não tem como ser sobre outra pessoa já que em nosso estado atual só podemos ter o nosso ponto de vista até que outras pessoas também o façam. E apesar desse inestimável material, ele não disse nada a nenhum de nós, jamais. Nem uma palavra. Dois dias após sua viagem, ele me ligou com seu típico tom de irrepreensível felicidade como se sempre existisse algo a mais a ser dito, dizendo apenas "Flávio, por favor, tire minhas coisas de meu apartamento e se quiser guardar algo, guarde, mas por mim, pode ir tudo o que há por lá para o lixo. Aliás, conto com você para isso!". Em pouco tempo vão colocar o apartamento para alugar, novamente e eu o entendo: Também preferiria ter tudo colocado no lixo, onde qualquer pessoa, qualquer estranho pode pegar o que (e se) quiser a deixar um grupo limitado de estranhos tomarem posse porque tudo estava disponível a eles.
      E então, no dia seguinte à ligação, fui ao apartamento. Desde então, eu estou aqui. E, por Cristo, onde o Gregor estava com a cabeça? Uns móveis velhos e empoeirados podem mesmo ir ao lixo, mas suas raízes mais antigas estão aqui. Seus livros, discos, textos e fotografias permaneceram aqui. Não todos, eu imagino, não sei o que ele levou consigo, afinal. Quando eu entrei no apartamento, o cheiro quente de mofo quase me fez recuar. Prendi a respiração, corri para as janelas e as escancarei todas. Saí de volta ao corredor e aguardei alguns minutos até não mais sentir aquele ar viciado. Alguns poucos dias fechado e o lugar parece um porão. Em seguida, entrei e pude realmente observar o apartamento. Não pensei em muitas coisas, só me passou pela cabeça que as paredes precisavam de uma pintura e os móveis, de fogo. Desci até o carro e peguei algumas caixas de papelão. Subi de volta ao apartamento e me sentei junto a uma pilha de papéis do Gregor. Era estranho fazer isso porque parecia tão fúnebre e errado mexer em suas coisas, dessa maneira. Escolher o que deveria ou não ir ao lixo. Ele me disse que tudo iria, mas se ele estivesse aqui, com certeza não se desfaria de nada disso.
      Separei os papéis por relevância. Simplesmente o que era relevante ou não. Certidão de alistamento? Relevante. Lista de compras com apenas dois itens: café e chicletes? Não relevante. Não era muito estimulante, admito. Até que, em um canto do quarto de Gregor, encontrei um par de cadernos, folhas soltas e algumas cartas recebidas, bem amarrados, com uma caneta prendendo o laço. Ao lado dessa pilha, mais ao canto, uma bola de papel amassada distraidamente, formada por uma porção de folhas. Era uma carta. Aparentemente não foi enviada, mas considerando o número de rabiscos e correções, pode muito bem ser um rascunho. Como eu poderia saber? Sentei-me no chão, apoiado à cama e coloquei-me a analisar o conteúdo do papel. Se relevante ou não. Ao ler a sua assinatura, ao final de todas aquelas páginas, corri de volta ao início. Não tinha data alguma. Não parecia tão antigo, só desgastado, como se lido e relido inúmeras vezes, dobrado, desdobrado e redobrado insistidas vezes, em sabe-se lá que momentos. Eu mesmo reli em seguida. Devo dizer que no momento, e desde então, não consigo pensar em nenhum outro referencial tão pessoalmente universal para expressar o amor como essa carta, que reproduzirei integralmente aqui.

      Boa leitura.




      "COMEÇO
      Pronto. Não sabia por onde iniciar a escrever e lembrei que a melhor maneira de fazê-lo seria pelo começo. Esse foi ele.

      Não sou muito bom com datas e esses sistemas popularmente aceitos para medir o tempo, você sabe bem disso. Mas, após consultar um calendário (agora eu tenho um!) percebi que já faz cerca de dois meses que nossa relação acabou, estamos distantes e não mais nos falamos.

      Bosta.
Esse começo todo soa tão austero, como se eu estivesse com a voz embargada, em lágrimas, com a barba mal-feita e cheirando à tristeza. Fico feliz em poder escrever que não estou. Fico feliz em poder escrever que não estou, mais. Essa carta pretende justamente expor isso. Não, não isso. Porque não é como um ato de orgulho absurdo ou uma tentativa meio patética de auto-afirmação pós-rompimento. Já superei isso também, da mesma forma que eu o fiz por causa de outros relacionamentos anteriores, com dito-insucessos incomparáveis ao tamanho do que senti quando eu a perdi. Droga, não gosto de dizer que eu a perdi, Camila, já que nunca realmente a possui. Isso não existe, sob nenhuma variável. Isso não existe simplesmente porque possuímos carros ou sapatos, mas pessoas, não. Por isso não gosto de dizer que eu a perdi. Mas, manterei o termo, na falta de palavra melhor. Para todos os efeitos, vou tentar abolir ao máximo as explicações ou possibilidades lingüísticas de cada palavra ou sentença que eu escrever. Acho que você me conhece mais que o suficiente e já sabe o quão literal e figurado cada termo é, para mim. Um paradoxo, sempre. E sob essa dúvida proposital eu vou me manter.
      Por que estou escrevendo, afinal, você pode se perguntar. É uma dúvida razoável! Tive o impulso noutro dia e novamente esta manhã. E quando planejei isso, mentalmente, achei que começaria daqui porque
aqui é o começo real. Então, mesmo que já esteja caminhando para a segunda página, sinta-se à vontade para considerar como começo o parágrafo a seguir — se faz necessário colocar novo parágrafo para ter uma continuidade aceitável.
      Outro dia, pela manhã, acho que foi há uns dez dias, eu estava me vestindo para ir à padaria. Compraria algo para o café da manhã. Estava ouvindo uma canção qualquer que só estava realmente tocando como uma música incidental em um filme, para preencher um vazio sonoro que se apossou de lugares como meu apartamento, em tempos mais recentes. Passei rapidamente pelo espelho para garantir que eu ainda estava lá e parei em frente à parede em que penduro as fotografias. A rotatividade dessa parede é enorme e, ainda que de uns tempos para cá eu esteja um pouco desleixado e mais freqüentemente tirando fotos de lá do que pendurando, eu não pude deixar de notar que quase dois meses depois a sua foto ainda estava lá. Você consegue entender isso? Eu fiquei muito confuso, inicialmente, é claro. Nunca me habituei a você a ponto de não percebê-la ou sequer a venero platonicamente, o que seria perfeitamente compreensível. Se me permite explicar desse
aspecto platônico (prometo que não vou me prolongar) e considerando o que eu defino como platônico, pessoalmente, eu não teria começado nem a escrever isso ou escreveria e, talvez, a carta nunca saísse daqui. Porém, concordo com absoluta franqueza que de platonismos vivemos e muitas vezes não percebemos que o fazemos com tantas pessoas diferentes. O viver platônico também é o planejar com antecipação acontecimentos, eventos e situações com as outras pessoas ou com o mundo. É gerar aquele mínimo saudável de expectativas, é um amor pelo viver e pelo fazê-lo pleno. PLA.TO.NIS.MO (fim do aspecto platônico).
      Voltando à parede de fotos, encarei sua foto por longos minutos. Ela está lá entre tantas outras com ou sem relação direta —principalmente sem— e por alguns bons minutos me perguntei o porquê. Analisei tudo por um instante. Estou bem, estou feliz; a minha vida continuou como esperado e muito bem. Imagino que a sua também. Porém, sua foto, você, ainda está lá. Não tenho idéia de quantos minutos se passaram entre o momento em que a percebi em minha parede e cheguei a uma conclusão. Digamos que fora por dez minutos. Após dez minutos, então, entendi: Sua foto ainda estava ali porque eu não posso negá-la. Colocar em um arquivo e falar "hora de recomeçar". Não acredito em recomeços impulsionados por esse tipo de estímulos, eles seriam frágeis e falsos demais. Recomeços ocorrem o tempo todo, movidos pelo insignificante. Quando você o percebe como recomeço, provavelmente você já perdeu a primeira parte da história. Eu simplesmente não posso negá-la porque eu a amo, honestamente. Farei uma (nova) volta no tempo para ser mais claro.
      Há cerca de dois meses eu estava em um dia tremendo. Por alguma razão que pouco importa no momento, eu estava radiante. Era um dia realmente espetacular! Aqui e ali existia aquelas preocupações diárias, mas meus ânimos estavam à flor da pele. No final da tarde, meu celular soou por um instante. Era uma mensagem sua. Ao ver seu nome ali, no visor, já sorri largamente e abri a mensagem. Não me lembro os motivos para o dia ter sido tão bom, o que eu vestia nem qual era o clima daquela tarde. Me lembro apenas com clareza de suas palavras na mensagem: "Eu acho que eu não te amo mais". Vê? Ainda agora elas parecem tristes, sinceras e cinematográficas e, no momento, eu fiquei em choque. Após algumas mensagens, nos encontramos e conversamos melhor, mas o que eu poderia fazer? Um problema com a maneira que eu falo com seus amigos é uma coisa. Ou, uma suposta inadequação de meu comportamento em relação a um problema seu ou de alguém próximo (E para tanto, modestamente peço perdão por essas atitudes infantilóides que tantas vezes tive). Mas, o que fazer quanto alguém simplesmente não te ama mais? O amor está sob constante mutação e, assim sendo, sob constante definições de autores, artistas e pessoas em geral. No entanto, ele pode acabar? Eu realmente não vejo por que não já que você não pode medi-lo, mas quando você ama, você sabe que ele está lá, então, quando você não o percebe ali, provavelmente ele acabou. Uma vez, durante uma crise, você me questionou "Já ocorreu contigo? De repente, sem razão aparente, já te aconteceu de descobrir que um dia você simplesmente não ama a pessoa que você deveria amar? Porque você está cansado demais ou ocupado demais ou apenas porque não conseguia mais
sentir?".
      A coisa toda é tão complexa que eu fiquei atordoado por um tempo. Saía com diversas outras mulheres, procurava esquecê-la, apagar o amor que eu ainda sentia por você. Todo dia surgia uma nova teoria e conseqüente experiência que faria o amor "acabar" e, no final do dia, era tudo ridiculamente em vão e eu me sentia realmente estúpido, inserido em todo esse clichê.
      E o problema desse clichê é que quanto mais pessoas você envolve em algo assim, mais pessoas são machucadas; Mas, inicialmente foi bom, claro. Só que assim como isso veio, se esvaziou; eu preferia não estar mais ali, no meio daquelas pessoas, sorrindo como um imbecil e me enganando daquela maneira. Quando notei que enganava tantas mulheres proporcionalmente à necessidade de você, parei com aquilo tudo, por um tempo. Não tinha efeito algum. Estava tão entretido por aí que esqueci realmente de mim. Quando consegui, parei. Respirei. Olhei para mim. E estava tudo lá, ainda. Uma mágoa de amar e saber que não é amado de volta. Busquei amparo em canções e sofria silenciosamente. Me peguei com uma freqüência maior do que consideraria ideal balbuciando canções como
Ne Me Quitte Pas tal qual um mantra, oculto sob essa aparente e costumeira impassibilidade (ou quem sabe frieza) de minhas atitudes, no meu dia-a-dia. Mas eu permanecia completamente vulnerável. Ouvi as canções que me lembravam de você e vi filmes também. Lembrava de seus comentários sobre dadas cenas como se fosse uma daquelas opções extras de áudio e, movido pelo meu usual otimismo eu tentava me convencer de que ainda que tenha sido um duro fim, foi incrível enquanto durou.
      Hoje, eu vejo como isso foi um erro e percebo que é um erro muito comum. Claro, você deve se apegar ao que valeu a pena, porém um dia eu me questionei: Então foi
isso que valeu a pena? E aqui, vejo agora, foi um verdadeiro recomeço, não no sentido de ignorar que você existiu, mas algo mais próximo de ignorar como eu agi após o fim.
      Pensei por alguns dias e, nessas reflexões e auto-análises constantes, encarando tudo sob a mesma ótica, consegui separar bem o saudosismo e a memória do valor real desse amor que eu ainda sinto, pra mim. Conclui que sim, eu te amo e eu te amo mesmo. Eu te amo e não é preciso que você me ame de volta porque seria um tremendo erro pedir que o faça só para cumprir uma vaidade minha. Entendi que eu te amo porque o amor que você deu pra mim e eu sinto ainda por você é muito maior que o
amor que se pinta por aí. E eu o subestimei esse tempo todo. É algo muito além. Por te amar tanto, aprendi a viver em função do amor. Aprendi a ser uma pessoa melhor e aprendi que as pessoas de uma maneira geral têm tanto medo de ficarem sozinhas que se submetem a viver sem amor. E quase em uma torrente de otimismo e auto-ajuda, o amor-próprio já é uma manifestação real de que a solidão não é um problema em si e que estar sozinho não significa que você está solitário.
      É fácil, tão fácil, acabar com um relacionamento e negar a pessoa, negar o amor que você sente pela pessoa e assim, procurar seguir em frente. A beleza da coisa está em justamente encarar o amor ou o ódio e ver o quão isso realmente faz parte de você. No calor do momento você não consegue separar nada, mas é possível e é realmente gratificante fazê-lo.
      Falei que posso
entender o amor como algo finito. Contudo, particularmente, eu digo que ele não tem fim. Acho curioso notar que cheguei a discutir isso com um amigo e ainda que eu tivesse parte disso em mente, ainda me chateava um pouco. Ele me falou algo que soa um tanto radical, à primeira vista, mas que complementa perfeitamente o que escrevi há pouco. Considerando que o amor não tem fim, um dia descobrir não mais amar, por exemplo, indica que o amor nunca existiu, de verdade. Parece egoísta demais e aqui deixo a decisão pra você caso um certo grau de egoísmo é bom ou não. Em minha opinião, sem o egoísmo não há nada. Egoísmo é o nome feio dado para algo que pode ser bonito, sob as proporções devidas, claro! Honestamente, pense na palavra, independente de tudo que ela significa pra você: EGOÍSMO. Descartemos o ismo, ismos nunca são saudáveis, são comportamentos obsessivos, vícios. E então? O que temos? EGO. Eu. Droga, em que momento a nossa sociedade conseguiu transformar algo tão próprio e bonito como o EU em algo pejorativo ou errado ou em um comportamento obsessivo? Não há apenas certo ou errado, assim como as pessoas não precisam ser personagens ególatras e viciadas em si por tentar manter um mínimo de individualidade. Poderia me estender por páginas e mais páginas, dissertando sobre religião, educação, moral ou política. Todos esses factóides sob o meu ponto de vista, o que acha? Ninguém leria esse lixo, claro. Nem mesmo eu. Por isso não chegarei tão longe. Mas, eu devo dizer que essas esferas sociais e tantas outras são sempre amplamente difundidas mas tão, tão pouco pensadas, pra valer. Pensadas, pra valer. Pensar, pra valer, demanda tempo e energia assim como pensar, pra valer em si mesmo como o centro do mundo, de seu mundo ao mesmo tempo em que pensar os outros como outros centros do mundo, dos mundos deles, parece profundamente entediante quando um programa de vinte e dois minutos é exibido em trinta e sua única preocupação é com o volume de sua televisão. Não há espaço para si e, por mais que eu simpatize com a televisão, o dito aproveitável é mínimo e esse vazio transmitido tem massa o suficiente para preencher e atordoar a mais prolífica das mentes. Por isso eu considero o egoísmo, esse egoísmo parafraseado, o meu egoísmo, algo que pode até ser um pouco romântico. Aliás, ando tão maravilhosamente egoísta que clamo o egoísmo de meu porque o egoísmo de uso típico, por definição é feio e meio ocre, meio verde. Cheirando a madrasta de contos infantis. É o vaso de terra jogado no chão recém-limpo para que a princesa não consiga terminar a faxina a tempo de ir ao baile. O meu egoísmo poderia ser esse "amor-próprio" ou qualquer coisa que quiserem chamar. Um nível moderado de egocentrismo é tão benéfico como uma xícara de chá no final de um dia desgastante. O meu argumento é que todos, sem exceção, todos nós, seres humanos, somos auto-suficientes. Absolutamente auto-suficientes. Já li que não somos auto-suficientes ou que precisamos dos outros pra viver. Isso é uma mentira gigantesca. Nos convenceram assim, mas prefiro ver a verdade nas linhas de: não precisamos das outras pessoas, nós as apreciamos ou as admiramos, mas isso é diferente de precisar porque precisar indica uma necessidade de suprir algo que falta em você. Sendo você auto-suficiente, se trata de uma reação impulsiva, quase humilhante, talvez e precisar, nesse sentido, só pode resultar em algo realmente terrível, o descarte. Por favor, não seja simplista, Camila. Não aqui. Não seja simplista sobre a definição de precisar. Se você tem um problema com a fiação da sua casa, você precisa de um eletricista. Esse precisar é justamente o oposto do precisar a que me refiro. Vou me apoiar em um exemplo mais concreto e genérico: "Casal se conhece, se apaixona e namora. Entre as juras de amor, rapaz diz à moça (ou vice-versa) que a 'ama' e que precisa dela. Diz que estava incompleto, mas que ela o fez completo, que não imagina a vida sem ela, etc., etc." e aí o que segue é uma espécie de gratidão misturada a tantos outros elementos que permeiam uma relação. E não me entenda mal, tantas vezes eu ou você ou qualquer um no planeta pode e deve se sentir grato e os motivos que geram essa gratidão não precisam de forma alguma ser incensuráveis, mas acredito que a gratidão seja temporal. Ou limitada, pelo menos. Temos uma mania meio cristã de eterna gratidão, mas de rancores efêmeros o que é, no mínimo, incongruente. Se devemos perdoar e esquecer as ofensas, por que devemos viver dois mil anos sob a sombra de uma gratidão?
      Vivemos tão imersos nessa gratidão de coisas passadas em relação a outras pessoas sem diferenciar se o que sentimos é uma sensação real ou compulsória. Fala-se em banalização do amor, mas no fundo banaliza-se a gratidão, a necessidade, o meio, a mensagem, eu e você. Uma auto-banalização. Há a gratidão, mas por que viver em função dela? De volta ao exemplo, o precisar-gratidão é aquele erro extremamente comum que cometemos, cada qual à sua freqüência. Precisamos das outras pessoas, seja para satisfação ou para aprendizado porque somos auto-suficientes sim. Porém, eternamente incompletos. Se você aprende algo com alguém, você pode sentir-se grata à pessoa porque ela a mostrou algo que a completou em um sentido, mas isso não significa que a
pessoa a completou. Há sempre essa confusão. Somos insuficientes em saber pois nos expandimos a todo segundo enquanto vivemos então, há sempre uma lacuna a preencher. Mas, se confunde essas lacunas com incapacidades. E rapidamente nos descobrimos capazes em função de outras pessoas. Precisamos de outras pessoas porque elas nos completam e quando nos vemos distantes ou sem essas pessoas, temos a sensação de vazio, de que estamos perdidos ou apenas solitários. É um vazio, mesmo. Porque nos preocupamos tanto com gratidões eternas ou com a busca do outro por vaidade que o que você poderia ter aprendido foi apenas repetido, como uma cartilha com as palavras pré-tracejadas. Você traçou as palavras e entendeu como funciona, mas se retiram a cartilha e os esboços a preencher, você conseguirá pensar por si só e reescrever algo além daquelas palavras?
      De volta ao amor.
      Falei que o amor está sempre em mutação. Falei que subestimei o amor que senti por você, colocando-o sob os parâmetros do amor que é difundido em todos os lugares de como é o amor. Já em explícita contradição, eu a digo que de tudo o que se fala do amor, nada deve ser levado em consideração simplesmente porque não há uma regra. Digo-lhe agora que essa mutação e transformação é a causa dos desentendimentos que levam casais a se separarem sob a acusação de que o "amor acabou". Basicamente, ele se transformou e se transformou em algo diferente do que eles tinham em mente. Ele não acabou, mas tampouco é
aquele amor. Não é maior ou menor. É diferente, apenas e as pessoas têm medo do diferente. Como se paralisadas pela própria condição mutável de si mesmas e que dificilmente é aceita (por alguma razão as pessoas se orgulham de "ser" enquanto a beleza reside justamente no "estar"), as mudanças vão sendo negadas, mas negá-las não as faz deixar de existir. Cabe aqui enfatizar uma regra que considero universal, até que se prove o contrário: Negar não anula a existência de nada. Apenas adia o confronto. Então, por que se dar o tempo de negar se você sabe que é inevitável? (Não confunda, por favor, com destino ou nada assim. Falo de lógica humana e consciência da conseqüência dos próprios atos e ações. Não sei se existe tal coisa como o destino. Sempre me parece outro comodismo anestésico para justificar o que você não conseguiu prever e, prolongando esse parêntese mais do que o previsto, não acho que tudo seja previsível porque são os toques de imprevisibilidade [quem sabe o caos?] que prevalecem em nosso dia-a-dia. Contudo, me volto agressivamente contra o oposto absoluto, que seria o tal destino, em que não temos nenhum controle sobre nós ou nossas vidas porque tudo está predeterminado. Considero essa posição pretensiosamente inocente. Até talvez inaceitável. E o problema é que, na maneira que as relações foram estabelecidas em nossa sociedade, se você volta-se absolutamente contra esse comodismo do destino e começa a agir permanentemente e automaticamente por si sob suas próprias regras, você é igualmente comodista, apenas à sua maneira).
      Se em um casal as duas pessoas negam as suas próprias mudanças e a mudança do amor, segurando-se à outra desesperadamente, como uma espécie de corrimão espelhado, simultâneo e recíproco, culminará em dado momento que elas se apoiarão apenas na gratidão de tempos passados sem nenhuma perspectiva de futuro. A mudança é um crescimento e assim como sempre temos novas lacunas e necessidades a preencher, a mudança nos possibilita suprimi-las da melhor maneira possível. Se adiarmos a mudança, ela se acumula e simultaneamente ao enfraquecimento do relacionamento, ela gradativamente ganha força e um dia, quando somos obrigados a nos deparar com o inevitável, os corrimãos parecerão correntes e o relacionamento um suplício. "O amor acabou", simplifica-se. E agora eu consigo olhar melhor pra isso e repito: Não acabou. Não acaba. O amor simplesmente não acaba. Ele se transforma, cresce e quando o subestimamos, como freqüentemente o fazemos, ele parece fraco ou inexistente. Mas, é como ler e reler uma mesma linha diversas vezes ou repetir a si mesmo uma única palavra até que em um
jamais vu, ela parecer completamente estranha e desprovida de qualquer razão. É uma fadiga da redundância. Se somos acometidos desse tipo de fenômeno em situações absurdamente corriqueiras, Camila, o que nos impede de sofrermos de reação semelhante frente ao costume de amar?
      Disse, no início que nunca me habituei a você a ponto de não a perceber, Camila. Percebo que menti, de uma certa forma. Nunca me habituei a você a ponto de permanecer indiferente à sua presença, mas me habituei a amá-la sem realmente perceber o quanto eu, você e o amor mudamos. O começo então, está
aqui. O que eu deveria ter escrito há dez dias e só estou redigindo agora. Droga, o que eu deveria ter escrito ou eu deveria ter percebido há dois meses. Não. Eu deveria ter percebido isso antes do tal fim. Talvez, ter percebido isso antes não seria motivo o suficiente para continuarmos juntos, há momentos que, devido às mudanças e alterações em mim, você, no amor e no mundo todo, conseguimos perceber que simplesmente não há mais razões para ficarmos juntos. Eu vejo isso agora, parece-me perfeitamente lógico estarmos separados por razões já descritas aqui e tantas outras que eu jamais conseguirei definir. E para tanto, eu a estou escrevendo, não para parecer orgulhoso ou mesquinho nem nada disso. Sequer me vejo vaidoso ao escrever essa carta porque ela é o sentimento mais puramente honesto, sincero e pessoal que eu poderia tentar exprimir. E movido por este excepcional amor que sinto, sem gratidões eternas ou quaisquer enganações, eu honestamente digo:
      Obrigado.

      O amor, o
meu amor é, por definição, toda essa indefinição.

Do sempre seu,


Gregor."