20080401

Clara oo5

Minha querida Clara,

Concordo totalmente. E achei ótima a comparação com o Iago de Macbeth. A maior parte das pessoas confunde isso. Aliás, isso vale um novo parágrafo para abordar um comparativo com um troço real que acho que lança mais uma luz sobre o assunto e que provavelmente se tornará um longo parêntese não declarado, já cabe o aviso.

Teve uma coisa na outra carta que eu não te falei. Sabe o que me aconteceu quando eu mostrei os trechos a ela? Sabe a droga que me aconteceu? Eu me arrependi, me arrependi profundamente. Senti-me péssimo, um cretino da pior espécie. Estava permitindo algo que eu prezasse tanto a alguém que definitivamente não o valorizaria.

Então, me lembrei instantaneamente de nossos gigantescos ciúmes com O Apanhador no Campo de Centeio. Não queríamos que este ou aquele ser se apropriasse do livro. Refletindo agora, o que parecia ser um egoísmo juvenil ou ainda infantil, se mostrou apenas uma apurada sensibilidade para reconhecer quem poderia ler o livro e realmente compreendê-lo. Parecia uma loucura, só dizíamos "Ela não vai entender, ela não merece" ou ele, enfim. Qualquer pessoa. E então, agora eu consegui ver isso com um pouco mais de Propriedade. Lógico, temos um humor de caráter dito duvidoso (Ainda que "caráter" seja uma das mais fantásticas invenções humanas, eu não acredito muito nele como parâmetro para o raio que o parta) e sou freqüentemente questionado se sou louco ou se eu tenho algum problema e, sei que você também passa pelo mesmo tipo de acusação injusta. Não somos as únicas pessoas assim, claro —e uso a palavra claro consciente e com a extrema repulsa que tenho por palavras de instantânea obviedade—, mas eu acho que no final das contas, o humor ou qualquer outra ação que temos é apenas uma amplificação de sons internos. Entende isso? Quando eu (especificamente porque não posso me responsabilizar por toda uma humanidade) faço uma piada com um deficiente, por exemplo, não é que eu tenha preconceitos e seja um monstro insensível mas sim porque eu entendo a condição do deficiente e estou extremamente à vontade com isso, lido com naturalidade. O que no fundo eu entendo e vejo é que é apenas um ser humano, droga. Essa condição sim é dos problemas dele o maior, assim como todos nós estamos presos nisso. Então, quando alguém me repreende sobre algum comentário ou piada eu não dou muita atenção porque é uma pessoa que está tão apegada a uma perna a menos ou uma visão debilitada que resume aquele ser humano a um pobre deficiente, vítima do mundo.

O que eu vejo nesse sentido é simplesmente aquela visão maniqueísta e burra. Tenho um amigo assim. Outro dia, ele comentou durante um almoço sobre "os dois meninos que estavam judiando de um cachorro usando uma barra de ferro, um de dez e um de doze anos, e um outro menino de oito veio defender o cachorro e os outros meninos acertaram a barra de ferro na cabeça do terceiro e ele caiu, com traumatismo craniano. E os outros meninos fugiram". Para ele, os garotos eram MAUS. Alguém judiar de um cachorro e ainda conscientemente agredir outro ser humano é uma coisa que só alguém RUIM mesmo poderia fazer. Eu falei que as crianças não sabem o que fazem, não têm essa consciência dos atos que praticam sobre as outras pessoas. Não importava, nada importava, era como falar com o rádio. Ele arriscou uma comparação com "essas crianças de doze que pegam uma arma para assaltar e matar outras pessoas" mas isso eu brevemente o repreendi porque não é nem de longe um exemplo válido considerando que são crianças com históricos diferentes e, assim sendo, necessidades e culturas diferenciadas, o que o fez desistir em seqüência. Então, ele apelou para um exemplo de um assalto na sua mais genérica forma, de um rapaz fugir com uma moto após voz de assalto e o assaltante atirar, matar a vítima e nem levar a moto. Questionava-me com olhos fundos, raivosos e passionais se eu não acreditava que uma pessoa assim não era MÁ. Falei que é a mesma coisa que as crianças. Não isento a pessoa em absoluto. O comportamento é errado e é triste se deparar com isso mas o assaltante não é MAU; no máximo teve uma atitude má. Ainda tentei mostrá-lo que pode ser que o assaltante atirasse por impulso e depois, tomar consciência de seu ato e as conseqüências disso. Como se após atirar no outro, pensasse em como aquilo tinha dado em merda. E por experiência própria eu digo que cada um vê o assunto como quiser. Quando sofri aquela tentativa de assalto que tentaram roubar minha carteira, lembra? Não entreguei a carteira e saí no braço contra dois caras porque sabia que não estavam armados. Passado o momento, o que eu mais ouvi, de longe foi de como essa gente é. Ouvi repetidas vezes de rostos diferentes que esses vagabundos mereciam levar um tiro ou pagarem severamente por esse tipo de coisa. O que parecia ser inicialmente uma (não tão) simpática demonstração de empatia pelo meu problema se tornou apenas um exemplo de como o ser humano é paradoxalmente misantropo. Não estavam preocupados realmente com o que tinha acontecido comigo ou o que eu achava daquilo tudo [e mantenho minha opinião de que não posso culpá-los nem sequer ficar alimentando um ódio progressivo gratuito] mas estavam mais interessadas em mostrar como odiavam essas pessoas MÁS, os bandidos. Mais uma vez eu digo: Não os defendo, foi um comportamento errado. Contudo, e o comportamento dos mocinhos? Não é igualmente repreensível ou digno de discussão porque é ora demais condescente, ora demais fascista? Nada é verdade absoluta nem sequer mentira absoluta. Quando você resume tudo a dois pólos distintos, você sempre exclui possibilidades ainda mais valiosas e suculentas, que exigem um pouco mais de reflexão sobre o assunto —provavelmente aí está o grande problema.

Voltando um pouco, costumava me considerar misantropo por um longo tempo, quando era adolescente. Meu discurso se resumia a basicamente "Odeio pessoas". Nunca me questionei muito sobre isso porém, eu fui crescendo e percebi então, que o que eu considerava misantropia não era nada daquilo. Não era mesmo, provavelmente só achava o termo bacana. Não era filantropia tampouco já que foi mais ou menos quando notei, também, um pouco mais que as coisas não se encaixam na velha escola dos antônimos. Hoje eu digo, honestamente: Eu amo pessoas. Eu amo o ser humano e sempre cito o ser humano como meu animal favorito. Noto pelos olhares que me lançam que tudo parece uma piada minha e realmente não me importo. Há uma linha de Hugh MacLeod que sintetiza bem esse meu não se importar: a melhor maneira de conseguir aprovação é não precisar dela. Sou um ser humano também, obviamente (ou aparentemente). E o que eu odeio, e sempre odiei, é uma certa ignorância ou preguiça humana. Talvez mesmo um egoísmo, esse umbiguismo exagerado que afeta a maior parte da população. Não me excluo, não me excluo mesmo. Sou umbiguista também quase que da mesma maneira. Porém, eu não me preocupo em demonstrar sentimentos e sensações que são —ou deveriam ser— básicos a todo mundo para tentar ganhar pontos em alguma maluca escala social invisível. Não pratico filantropia uma vez por semana nem procuro qualquer outro desencargo de consciência (em todos os níveis, seja política, social, pessoal, humana ou ambiental) para me definir como ser humano. Daí, associo automaticamente às nossas perseguições espirituosas aos utópicos em geral, como jovens que se dizem anarco-punks mas não sabem o que isso realmente significa. Não há um termo pré-existente por aí que me defina como pessoa e sei que também nenhum define por completo qualquer outra pessoa senão, o ser que cunhou tal termo. Inclusive, considerando essa linha de pensamento, provavelmente aquele termo só definia aquela pessoa naquele período da sua vida, especificamente. Uma das únicas coisas que acredito afetar todos os seres humanos, sem excessões, é que é uma criatura em mutação. Não apenas psicológica mas orgânica —a genética e toda a evolução das espécies não me deixam mentir.

Pomba, isso tá realmente longo. Você ainda está aí, Clara? Estou acabando, já, não se preocupe. Essa capacidade de lidar com a mutação, seja ela constante e quase invisível ou drástica —e assim, imprevisível— é o que realmente difere as pessoas. É essa a sensibilidade, eu acho. Uma tranqüilidade em relação às mudanças. Inclusive, acho detestável quando alguém, em votos de Boas Festas diz a outro alguém, com boas intenções, não nego, para que "não mude nunca". É como pedir para a pessoa ficar amarrada ao portão. É ridículo. Quando se diz d'O Apanhador (Sim, voltamos ao Apanhador!) você sempre tem a sinopse: Garoto Que Não Quer Crescer, como se tratasse de um Peter Pan urbano. Isso é uma verdade incompleta. À primeira vista, o problema é crescer. Depois, você nota que o problema é crescer e se tornar uma dessas pessoas cômodas —que chamei de mocinhos logo atrás. E por fim, como em Laranja Mecânica (O filme, não o livro) conclue-se: Crescer não precisa sedimentá-lo se você não o quiser. Você não precisa ser um "adulto" porque isso não o define de forma alguma e, as coisas novas podem acabar substituindo as mais velhas contudo, na maioria dos casos, na maioria mesmo, uma não subtrai a outra mas adiciona. Complementa, mesmo!

E tem um trecho em O Apanhador que hoje acredito definir essa questão da sensibilidade. Folheei o livro e não o encontrei. Mas é aquele trecho em que o Holden diz que a maior parte das pessoas não sabe sorrir e nem se dão conta disso. Você, de cara, identifica ou procura identificar a veracidade física da afirmação mas o que realmente diz, eu acredito, é isso: Há pessoas que são sensíveis porque o são e a sensibilidade é invisível. Há pessoas que substituem sua sensibilidade por sentimentalismo e/ou romantismo exarcebados por uma causa, pessoa ou assunto. A sensibilidade é invisível, o sentimentalismo é palpável. Para que todos reconheçam a sua enorme bondade, a pessoa parecer abdicar de sua própria sensibilidade. Não sei se isso é um fato, é só algo que eu observei que se repete em quase todas as pessoas. E como você disse, as crianças têm sensibilidade (Que os "adultos" chamam de sinceridade ou coisa que o valha) ou seja, isso é algo que as pessoas podem manter na fase adulta ou podem cair abismo abaixo do campo de centeio para os cinismos, narcisismos e todo esse tipo de vulgaridade.

Como o problema do Beto que você me falou em sua carta. Ele procura esse ajuste a um estilo de vida que é vulgar e provavelmente está a se ajustar por essa razão. É um esvaziamento de si. As pessoas não entendem as drogas, simplesmente não entendem. Elas não entendem que toda e qualquer droga já teve um uso socialmente mais aceito, ainda que dentro de grupos específicos, porque tinham significados diferentes aos usuários. Os alucinógenos eram utilizados porque as pessoas realmente acreditavam que aquilo as fazia transcender e ter contato com deuses. Ou simplesmente como algo que dava energia e disposição instantâneas. Ou ainda porque era elegante. Diabos, eu realmente não sei! Com o passar dos anos, a medicina declarou que faz mal ao organismo, a longo prazo em inúmeras frentes e isso se tornou apenas um símbolo banal de rebeldia. Se alguém me convencesse que utiliza dessa ou daquela droga porque realmente o quis, pessoalmente, consideraria aceitável. Como o Salinger diz no Seymour, uma Apresentação, "Não estou cem por cento convencido de que alguém precise de motivos inatacáveis para fazer citações dos autores de que gosta, mas é sempre agradável, isto eu concedo, ter algum bom motivo". Porém, todas estão sempre atreladas a histórias fantásticas, seja por causa de bandas, artistas ou na mídia em geral. Aí, vem essas correntes como o niilismo para dar força e pronto, se você se droga você é equiparável ao artista X. É normal ter isso para auto-afirmação em um momento ou outro da vida mas o que me deixa chateado é que a maior parte das pessoas sequer se dá conta disso ou quando o faz, é tarde demais. Passa tanto tempo procurando viver a vida dos outros que resta pouco da própria a se viver.

Quanto àquela mulher, ontem assistimos a Festim Diabólico, naquele cinema meio cult (haha), sabe? Notei no escuro em poucos momentos que ela estava um pouco impaciente. Depois do filme eu estava em êxtase e saí do cinema aos galopes, gesticulando e falando muito. Quando vejo um filme pela primeira vez não gosto de sair falando "Gostei" ou "Não gostei". Há ótimas fitas que são simplesmente desprezadas quando você acaba julgando o filme, impulsivamente. Mas você sabe o quanto eu gosto desse filme e eu não a vi por lá. Aliás, você foi? Achei que a encontraria por lá. Enfim, caminhamos um pouco, sentamos para um café e, ainda que tenha sido um tanto divertido, não conseguia deixar de pensar em como aquilo não duraria. Simplesmente não duraria. E por que? Porque a sensibilidade dela é mais aquele caso do sentimentalismo. É palpável, óbvia. Ela me citou um livro daquele autor cult-cult mas que não vale o próprio peso em merda e me apontou um trecho para ler no livro. Não lembro da citação, está muito tarde e minha memória vale tanto quanto esse autor mas era realmente cretino. Não sei se era tão cretino assim mas era algo nesse nível, juro pra você. Não, não era. Era muito pior, era muito mais cretino, parecia uma caricatura menos divertida. Ou uma caricatura diferente. O que importa é que eu fiquei nauseado, de verdade. Nunca achei que leria algo tão pretensioso e babaca que fora publicado de verdade. Nessa hora eu fechei o livro e falei "Não dá. Li o primeiro parágrafo e acho que foi a pior coisa que eu li nos últimos dez anos". Ela insistiu para que eu terminasse de ler aquele texto e desse uma folheada no livro. Relutei um pouco mas terminei. Deus, aquele texto era bizarro, uma nojeira. Basicamente o sujeito diz que nunca tinha conseguido colocar uma linha no papel e, nos anos 70, o autor experimentou LSD porque os amigos diziam que dava um barato e afirmou não ter sentido nada de muito diferente e ele dizia que achou que não tinha dado nada mas só então percebeu que estava chapado ou coisa assim. E por fim, em umas três ou quatro linhas ele descreve as pobres alucinações visuais que ele teve e como desde então escreve e etc. É uma narrativa tão pobre, tão seca e tão artificial de qualquer coisa que até me lembro de ter pensado que provavelmente já tinha lido listas de compras mais emocionantes. Geralmente não sou tão ranzinza mas é que acho essa história toda muito desgastante. Cansa e muito. Como eu disse, nesse momento, não vejo isso durando muito. Vou seguir minha vida, provavelmente. Se rolar algumas trepadas no caminho, ótimo. Caso contrário, não fará muita diferença. Pode soar meio monstruoso mas é só uma forma prática de viver a vida. Não teria realmente paciência para namorar-namorar, formalmente falando, eu acho. E absolutamente não teria essa paciência com a senhorita sentimental.

E é isso. Não sei se a leitura foi cansativa ou entediante, Clara. Não a reli ainda mas é só que é ótimo escrever para você. É sempre um prazer!


Com todo o meu carinho,



Gregor