20081114

Trajeto

      Todos os dias eu tomo o ônibus e sigo nessa rotina que me desagrada um tanto. De uma forma geral, detesto ônibus. Seu barulho, a falta de estabilidade, a demora para completar um trajeto e a imprevisibilidade de horários. E me incomodam também as pessoas. Geralmente rudes e indiferentes aos outros e a si mesmas, provavelmente.
      Outro dia vi um homem, de cabelos um tanto bagunçados, camiseta pólo um amarrotada e uma expressão compenetrada. Ele escrevia em uns papéis pequenos, como uma folha de sulfite comum cortada em quatro. Ele tinha uma porção delas. Escrevia algumas coisas, preenchia a folha e, em seguida, colocava essa folha escrita no final da fila para continuar escrevendo na folha branca que era revelada.
      É bonito ver alguém escrevendo com tanta concentração, em lugar tão improvável. O barulho, o balanço, o empurra-empurra. Me aproximei do lugar onde ele estava sentado e tentei ler o que ele escrevia. Não consegui ler muito bem, naquele dia, apenas identifiquei se tratar de algumas frases soltas, pensamentos próprios. Notei que alguns falavam de Deus ou de iluminação. Outros de sentimentos bastante louváveis e surpreendentemente muito puros e inocentes para um homem que aparentemente já tem seus quarenta e tantos anos. Gostaria de ter lido alguma coisa por completo, mas infelizmente não conseguia ter nada maior que algumas palavras soltas que ora faziam um tremendo sentido para algum contexto que eu imaginei se tratar, ora absolutamente nenhum.
      Por maior que tenha sido a minha curiosidade, fiquei simplesmente feliz de ter presenciado aquilo, no momento me bastou. Me foi suficiente perceber entre tantas pessoas um homem alheio aquilo tudo, redigindo seus pensamentos e idéias com afinco, folha a folha, por todo o trajeto. Associei esse comportamento a uma espécie de mantra. Não sei se é justa a comparação, parece justa pra mim. Um mantra pessoal, uma oração igualmente poderosa e real, espontânea e de profundo valor espiritual. Uma busca de si através do raciocínio lógico impulsionado pelo coração. Me senti muito grato por ter presenciado isso.
      Dias depois, vi o mesmo homem com o mesmo comportamento. Dessa vez não pude me aproximar de seu banco, permaneci de pé e distante e ainda assim fiquei profundamente feliz de ver aquele homem de expressão séria em busca de si às sete horas da manhã, em seu mantra. Suas palavras me eram invisíveis mas não podia deixar de me sentir feliz por elas estarem ali, em esferográfica preta, linha após linha.
      Hoje pela manhã, ao subir no ônibus vi esse homem novamente. Ele escrevia e nada mudou. A cor da camiseta era outra, mas o modelo era o mesmo. Consegui me posicionar bem ao lado de seu banco e tentava ler alguma coisa que escrevia. Ele é muito rápido, uma coisa meio fascinante.
      Aliás, fascinante foi perceber ter encontrado alguém tão valioso ali, em meio a tanta gente que geralmente me irrita. No mesmo espaço, sob as mesmas condições e sob o mesmo disfarce: pessoas.
      É por esse tipo de coisa que não consigo ver um paraíso e um inferno como as pessoas colocam, o paraíso lá no alto, o inferno lá embaixo. Pra mim é cada vez mais claro que eles estão muito próximos e interligados, presentes em todos os lugares que se vá, por pior, ou melhor, que pareça a situação.
      Hoje o homem ainda escrevia compulsivamente, como se fosse lógico que o fizesse ali, naquele momento sob aquelas condições. Rapidamente preenchia uma folha e em seguida já passava para a próxima, ocultando aquelas linhas dos olhos estranhos e de si mesmo.
      De todas, consegui ler apenas uma, instantes antes dele precisar se levantar para descer do ônibus. Ela dizia:

Seja quem for que amamos, nele encontraremos nossa alma em sua maior expressão.


      E então, ele guardou seus papéis no bolso da camiseta, se levantou e desceu do ônibus. Para mim, pareceu o suficiente.