20101223

Autocombustão



    O carro buzina lá fora. Carlos grita da janela de seu Corsa 99.
    – Vamos, Márcia! A gente tá atrasado pro cinema!
    Márcia arrumava-se rapidamente em seu quarto, de frente para um grande espelho atrás da porta. Subia nos sapatos de salto alto enquanto pendurava os brincos, alcançando em seguida o pó compacto que estava sobre a penteadeira. Aplicou um pouco de blush rosáceo sobre as maçãs do rosto e colocou os cílios postiços. Realçou os lábios com um batom de um vermelho apagado e estava pronta. Aproximou-se do espelho e escancarou os dentes como um cão, analisando se havia algum resquício de batom, para em seguida pegar a bolsa deixada sobre a cama.
    Márcia desceu as escadas rapidamente e chegou ao carro. Abriu a porta e entrou.
    – Estou pronta! Vamos? – disse virando-se para Carlos.
    Carlos não sequer olhou para o lado, apenas virou a chave ligando o motor e colocou o carro em movimento.
    – Você sempre se atrasa. Espero que cheguemos a tempo para o filme.
    – Desculpe.
    – Márcia, não é questão de desculpas. Você sempre pede desculpas, mas numa outra oportunidade novamente se atrasa.
    – Por Deus, Carlos. Não é assim.
    – O Gregor já deve estar lá. Marcamos com ele às 16h e saímos de casa quinze minutos depois do horário marcado. Ele vai ficar puto.
    – O Greg sempre se atrasa também.
    – Isso é problema dele, Márcia. O nosso é chegar no horário, como se algo assim fosse possível. – disse a ela, em um tom agressivo, acima do ideal.
    Dizendo isso, Carlos alcançou um cigarro do maço e um isqueiro que estavam sobre o painel do carro, o acendeu e soltou uma densa nuvem de fumaça. Márcia permanecia em silêncio olhando para baixo. Em seguida, abriu sua bolsa e retirou para si um cigarro. Carlos olhou rapidamente para o lado e com o mesmo isqueiro que utilizara, acendeu o cigarro para ela.
    – Obrigada. – disse ela, com a voz baixa.
    – Pomba, Márcia. Não gosto de ficar puto contigo, mas eu não consigo evitar e acabo falando demais.
    – Você errou no tom, mas você tem toda razão. – falou Márcia olhando para ele.
    Carlos olhou para o lado com algum estranhamento. – Você não costuma dar o braço a torcer tão facilmente.
    – Às vezes as pessoas mudam. Preferiria que eu começasse a gritar contigo quando você sabe tanto quanto eu qual é o ideal da situação? – perguntou Márcia, tragando seu cigarro em seguida.
    – Não, não, em absoluto. – respondeu Carlos, enquanto refletia sobre aquele súbito momento e distraidamente coçava o braço e, depois, o pescoço.
    – Olha, tem uma vaga ali! – irrompeu ela apontando para um espaço vazio entre dois carros.
    Carlos lançou a bituca pela janela e estacionou o carro com leveza. Ele sempre fora um bom motorista, do tipo de pessoa que você rapidamente percebe sua habilidade ao volante não em detrimento aos outros motoristas, mas por ser um motorista acima da média. Felizmente ele nunca se gabara de tal qualidade, ele simplesmente dirigia.
    Desceram do carro e caminharam até o cinema em silêncio. Carlos olhou para os horários das sessões do filme e em seguida para seu relógio de pulso, conferindo se o atraso tinha sido prejudicial. – Chegamos a tempo! – completou.
    Ela olhou para Carlos sorrindo, passou a mão nos longos cabelos castanhos e olhou ao redor. 
    – Onde está o Gregor?
    – Ainda mais atrasado do que nós! – ele disse rindo. Ela riu também. – Vou comprar os ingressos, por via das dúvidas.
    Enquanto comprava os ingressos, ela apanhou seu celular da bolsa e ligou para Gregor. – Oi Greg! Onde você tá?
    – Estou chegando aí em oito minutos. Já começou o filme?
    – Não, não. Fica tranquilo. O Carlos já tá comprando os nossos ingressos.
    – Ah. Puxa. – Gregor parou um instante. – Obrigado!
    – Não por isso. Nos falamos já já.
    – Até logo!
    Ela desligou o celular e olhou em direção a bilheteria. Carlos já estava voltando, com os ingressos na mão, sorrindo.
    – Conseguiu falar com ele?
    – Consegui sim, ele está chegando.
    – Ah, Greg… Vamos fazer assim, você quer pipoca?
    – Pipoca? Não, obrigada. – ela respondeu ainda segurando o celular com a mão esquerda, olhando distraidamente para um cartaz de uma das próximas atrações. 
    – Tem certeza?! Eu vou ali comprar. Não consigo ver um filme sem pipoca. Vamos lá, eu compro um chocolate pra você.
    Chegando à bombonière, ele pediu sua pipoca, refrigerante e um chocolate que estava na vitrine. A voz de Gregor distraiu a ação.
    – Cheguei a tempo? – ele perguntou ao casal, animadamente. Sua testa estava molhada de suor e seu ar, bastante cansado, mas Gregor exibia um largo sorriso em seu rosto. 
    – Bem a tempo! – respondeu Carlos. 
    Carlos deixou a pipoca sobre o balcão e apertou vigorosamente a mão de Gregor. Em seguida, Gregor beijou o rosto de Márcia, abraçando-a em seguida. – Como vão? – perguntou.
    – Bem, muito bem. A Márcia nos atrasou um pouco mas ainda assim chegamos antes de você, cara! – ele disse em tom de brincadeira. Márcia o olhou indignada. Gregor olhou para Márcia percebendo sua irritação e sentiu-se um pouco incomodado.
    – Eu sou o rei dos atrasos! – desconversou. – Escutem, vocês querem entrar já? Além de pegar um bom lugar, gostaria de me aproveitar dos benefícios reconfortantes do ar condicionado da sala.
    – Quem mandou vir correndo? – Carlos provocou.
    – Se eu não venho correndo, eu não chego!
    Márcia já começara a caminhar em direção à sala sem falar, consequentemente atraindo os dois rapazes atrás de si.

* * *

    O filme era uma agitada história policial, com carros em alta velocidade e explosões regulares. Márcia sentia-se profundamente entediada, ora pela película em si, ora pela irritação com o noivo. Sem grandes movimentos, inclinou-se para a esquerda, ao ouvido de Carlos e sussurrou. – Volto já.
    Levantou-se, passou em frente a Gregor, saiu da sala. Foi em direção à rua com a bolsa a tiracolo, parando no alto das escadas que levava à calçada em si. Apanhou um cigarro da bolsa e acendeu com um fósforo. Batia o pé no chão, rapidamente, extremamente nervosa. Observava os arredores, todos os carros que passavam, as pessoas passando, o balançar das árvores. O vento soprava seus cabelos e tocava seu rosto com gentileza. Uma mão tocou seu ombro. Era Gregor.
    – Posso te acompanhar? – ele perguntou.
    – Sim, claro! Você quer um cigarro?
    – Não, estou com o meu aqui. – ele falou, alcançando um maço em seu bolso e acendendo um cigarro em seguida. – Que filme bobo, né?
    – Sim, insuportável.
    – Não sei se fico mais impressionado com as atuações geniais ou com a facilidade que tantos carros explodem na sequência. Você conseguiu ver a marca dos carros? Porque eu sei que tipo de carro eu não quero comprar: os de autocombustão.
    Márcia olhou para Gregor e riu um pouco, desviando o olhar em seguida, voltando a desatenção para frente, tragando o cigarro e soltando a fumaça em seguida, mas permanecendo em silêncio.
    – Tá tudo bem, Márcia? – ele perguntou olhando diretamente para as têmporas dela, que estavam úmidas de suor, apesar da temperatura estar bastante agradável naquela época do ano.
    Ela permaneceu olhando para o horizonte. – É que o Carlos me tira do sério! – ela disse com uma clara irritação em sua voz, voltando o rosto para ele, que a olhava calmamente. – Apesar de cobrar uma postura de mim e aparentemente me entender, ele simplesmente não consegue deixar um momento, uma única falha passar.
    – Você fala do negócio do atraso?
    – Sim, o atraso. Você acredita que ele falou aquilo? Precisava frisar quem causou a droga do atraso? Não chegamos antes de você de qualquer maneira? – ele consentiu com a cabeça. – Pois bem, qual a diferença? Note, não estou questionando quem atrasou a quem, eu causei o atraso, sei disso. Mas questiono a atitude de trazer isso, sem a menor necessidade, apenas pela provocação, sabe? – dizendo isso, Márcia percebera que seu cigarro já estava apagado e segurava apenas a bituca, lançando-a ao meio-fio e pegando mais um cigarro em sua bolsa.
    – Mas o Carlos é bastante brincalhão, não deve ter sido por mal, Márcia.
    – Essa não foi a primeira e nem sequer será a última vez que ele faz esse tipo de coisa. O Carlos simplesmente não sabe ficar quieto, em alguns momentos. E pensando bem, não é nem questão de provocação. É o fato dele ser inseguro e utilizar esse tipo de brincadeira inocente para deixar claro para si e para quem o ouvir de que a culpa é minha. 
    Enquanto Márcia falava, Gregor sentou-se ao primeiro degrau da escada e fez um gesto para que ela o acompanhasse. Ela sentou-se ao seu lado e continuou.
    – E não é só isso, e não só o Carlos. É tudo. São todos. Todos são assim, todos são egoístas e imperdoáveis, sabe? Que droga de mundo é esse, Greg? Você fica ao lado do seu noivo, dos seus amigos, de sua família. Faz de tudo para que todos fiquem bem, larga o que está fazendo para ajudar a quem for, no momento que for. E no momento, nos poucos momentos que você simplesmente precisa de de uma palavra amiga, um conforto, uma preocupação, eles viram as costas pra você e deixam você na mão. – Márcia começou a massagear suas têmporas, fazendo uma pequena pausa. Alguns fios de cabelo já estavam colados em sua têmpora devido ao suor enquanto falava e agora, começavam a se libertar novamente.
    – Você realmente precisa se acalmar um pouco, Márcia. Desse jeito você vai ter um treco daqui a pouco. – Gregor falou colocando a mão sobre o ombro de Márcia, massageando-a gentilmente.
    – Greg, não pense que eu sou mal agradecida ou acredite que apenas porque eu fiz algo pela pessoa, a pessoa deva fazer algo por mim. Não é isso, entende? Não é uma mera questão de troca. – dizendo isso, ela deixou as têmporas livres novamente. – É o simples fato de você saber que pode contar com alguém, ou se deixar pensar que esse alguém pode proporcionar surpresas, essas coisas, sabe?
    Gregor olhava atentamente para Márcia enquanto ela falava. Ela gesticulava muito e seus olhos estavam cheios d’água.
    – Aí, quando você faz algo errado, que desagrada ou simplesmente precisa de um pouco de ajuda, os outros, o Carlos, todos são incapazes de simplesmente perceber que todos erram ou que a outra pessoa precisa de ajuda. Eles só olham para si mesmos, o tempo todo. Ficam tão ensimesmados que não percebem todo o apoio que você já deu, cobram mais apoio e jogam na sua cara seus erros. – dizendo isso, ela começou a buscar em sua bolsa um pequeno pacote de lenços de papel. – Essa droga de nariz que fica sempre escorrendo. – ela secou seus olhos e limpou delicadamente seu nariz.
    Gregor observava a aventura de Márcia com o lenço de papel, com a cabeça apoiada em sua mão e seu cotovelo apoiado sobre sua perna. – Lembra quando nós nos conhecemos, que estudávamos juntos no ensino médio? – ele perguntou.
    – Sim, lembro sim. O que é que tem? – ela indagou ainda distraída com a coriza.
    – Você se lembra que você namorava esse rapaz, o Alberto Qualquercoisa? Como você era feliz ao lado dele?
    – Claro. E você namorava a minha prima, a Leila. – e colocou o lenço usado em uma pequena sacolinha plástica que carregava consigo para tal finalidade. 
    – Pois é… Lembra daquele dia em que todos viajamos para o interior e fomos àquele parque com um baita lago lindo em um dia super calmo?
    – Valha-me Deus, Greg, mas que suspense todo é esse? É claro que eu me lembro, eu me lembro de tudo daquela época.
    Gregor se levantou e se espreguiçou. – Pois bem, aquele dia foi um dos dias mais simples que já passei em minha vida. E ainda assim um dos mais divertidos. Eu me lembro de cada cor, de cada textura, de cada cheiro. – ele sentou-se novamente. – Eu tenho aquela imagem em minha mente com a força da mais bela pintura jamais feita.
    – Aquele dia foi mesmo incrível. Lembra que fizemos uma corrida com você e o Alberto de cavalos, nós nos ombros de vocês e aí vocês dois já tinham armado tudo e lançaram a gente no lago? Seus tontos! – dizendo isso, ela sorriu e deu um tapa amigável no ombro de Gregor. 
    Ambos ficaram rindo por algum tempo, diluídos em memórias. As memórias daquele dia ensolarado, o lago tal qual um espelho, as árvores lindas, vivas e verdejantes. As brincadeiras infantis de corrida, polícia e ladrão e esconde-esconde entre quatro jovens adultos sobre a grama verde e cheirosa. O piquenique confortável, as risadas, os sorrisos, as gargalhadas. A terra úmida próxima ao lago que envolvia seus pés descalços e a simplicidade de uma simples tarde, distante de tudo e todos. 
    Subitamente, Márcia voltou a si. – Mas e daí, Gregor? O que é que tem tudo isso?
    – Oras. – ele acendeu outro cigarro. – Nesses momentos, geralmente eu gosto de me transportar para os melhores lugares de minha memória e me deixar tomar pelas boas energias do que já passei.
    – Mas Greg… As coisas são diferentes hoje. – agora quem pegou outro cigarro em sua bolsa foi ela. – As coisas são completamente diferentes, aliás.
    Greg tragou o cigarro e soltou a fumaça lentamente. – Aí é que eu discordo. Por que elas são diferentes? Por que elas precisam ser diferentes?
    – Ué?! Porque eu mudei. Porque as coisas mudam. As pessoas mudam. Eu não namoro mais com o Alberto, mas com o Carlos, inclusive.
    – Mas me diz, você se veria casando com esse Alberto caso ele tivesse a pedido em casamento? Tanto faz se naquela época ou hoje em dia?
    – Não sei! Não sei… Como eu posso saber um troço desses, assim? – ela respondeu um pouco indignada.
    – Pensa bem. Você não continuou com o Alberto por uma razão. O tempo que vocês passaram juntos foi ótimo, mas uma hora, acabou. Com o Carlos, esse tempo não apenas está acontecendo como você quis seguir adiante, vocês vão se casar até, caramba!
    – Sim, eu sei.
    – Pois bem, Má, alguma coisa a fez pensar em largar o Alberto quando você terminaram e a disse para continuar com o Carlos independente desses ou quaisquer problemas. 
    – Mas… Droga, Greg, mas que droga. Eu amo o Carlos mas às vezes as coisas ficam… insustentáveis. 
    – Sinceramente, Má? Só você pode ser feliz, se fazer feliz. Ainda que você tenha escolhido ter ele ao seu lado para o resto da sua vida, ele precisa de ajuda para entender como você se sente e o que a agrada ou desagrada. Mas sem se deixar… Não sei? Vitimar? Não se deixe levar por esse tipo de ideia e se considerar uma vítima da situação. Só você pode ser agente da sua felicidade, ninguém mais. Você lembra com tanto carinho daquele dia porque você escolheu estar lá, naquele dia, conosco, brincando e se divertindo. Entende? – Greg terminou de falar e lançou a bituca no degrau ao lado de seu pé, extinguindo o cigarro com a ponta do pé. 
    – Má, você é feliz? – completou.
    Márcia permaneceu em silêncio, após as palavras dele e ficou novamente encarando o vazio, fumando, absorvendo, refletindo, ponderando. Por fim, acabou abaixando os olhos e viu o seu pequeno relógio ao redor de seu pulso delicado apoiado em sua perna. Levantou-se de sopetão lançando sua bituca em direção à rua.
    – Minha nossa! Já estamos aqui há quase meia hora!! Vamos voltar correndo, já passou da metade do filme!
    E ambos correram de volta para o cinema.

* * *

    Já próximo ao clímax do filme, onde o mocinho está prestes a resgatar a mocinha, montado em seu carro veloz e armado com a mais bela pistola, o cinema estava repleto de sons de tiros, explosões, barulhos de motor e ameaças do vilão. Carlos estava vidrado com toda aquela ação. A sala, iluminada apenas pelo reflexo da projeção das sequências repletas de adrenalina e tensão estava quase que por completo imersa nos rumos inesperados que o roteiro tomara, deixando todos sem fôlego, à exceção de Márcia.
    Márcia voltara um pouco desconexa. Não conseguia prestar atenção às sequências daquele filme, seus olhos encaravam a projeção mas buscavam visualizar outras questões. Sentia-se afligir sentada ali, no escuro, vendo um filme desinteressante, dos tantos que já vira ao lado de Carlos simplesmente porque são os filmes que ele gosta de assistir. Ela nem gostava tanto assim de cinema, afinal. E buscava em si as mais bonitas imagens para sentir-se melhor. Uma tentativa de acalanto próprio.
    Enquanto homens atiravam uns contra os outros na tela, Márcia sentia novamente seus olhos se encherem de lágrimas. Dessa vez, inclinou-se para a direita, em direção a Gregor.
    – Greg? – sussurrou. – Lembra quando naquele dia no parque nós subimos em uma árvore para ver o pôr-do-sol e quando anoiteceu, todos descemos, menos você porque você se lembrou, lá do alto que tinha medo de altura e levou quase meia hora pra descer e todos quase morremos de tanto rir?
    – Lembro, claro. – ele sussurrou de volta.
    – Greg… – ela apertou a mão dele contra a dela. – Eu era feliz naquela época, não era?

20100725

Novidades n'O Pinball Mutante

   O Pinball Mutante agora está de casa nova!

   E eu tenho um domínio para chamar de meu! A partir de agora, você pode (in fact, deve) acessar através de pinball.semtitulo.org. Economiza-se só uns dois caracteres, mas é melhor: agora é só "pinball" e não "pinballm". Cai o blogspot.com e fica o semtitulo.org. Facilita, centraliza tudo, fica tudo mais simples!

   Então, fica dica: atualize seus favoritos e seus feeds RSS (if any!) porque sabe-se lá até quando fica valendo o endereço antigo.

   Ah! E em breve o semtitulo.org fica integralmente no ar. Por hora, está em construção.



   Não prometo que vai ter texto novo aqui em breve porque não é assim que as coisas acontecem.

   E você já sabe bem disso.

20100308

Re: Acidentes

      São Paulo, 08 de março de 2004.

      Li um texto publicado na edição de Janeiro chamado "Acidentes" e gostaria de dividir algumas palavras com vocês porque finalmente entendi de certa forma do que se trata.
      Eu fiquei bastante intrigado com essas linhas e até esta manhã eu não sabia bem o que pensar. Talvez seja verdade, o autor tenha alguma razão em suas palavras.
      Estava no ponto de ônibus esperando o meu transporte chegar. Estava amanhecendo. Apesar de já estar bastante claro, era possível perceber alguns raios de sol amarelados que cortavam o ar, entre as folhas e saindo de algumas nuvens. Um dia bastante bonito. Subitamente, aconteceu. É difícil expressar a euforia que sinto em relação a isso e é provavelmente impossível dividir isso com alguém, mas preciso tentar. Não foi um atropelamento entre automóvel e gente, mas entre gente e bicicleta. Não houve vítimas fatais, ninguém sequer se feriu de maneira grave. Mas mesmo em evento tão menor, a energia gerada foi tão impressionante e tão... Delicada. Quase invisível aos olhos. Os fatos vocês já sabem, vou tentar descrever o que pude observar além do óbvio.
      Um rapaz atravessava na faixa de pedestres, todos os carros estavam parados no semáforo. Ele atravessava e a um metro, talvez um metro e meio da calçada, pareceu-me que ele parou. Uma bicicleta passou e passou por nós. Não sei dizer bem o que aconteceu, no entanto é a parte mais bonita de todas. Parece que eu o percebi parar, mas provavelmente isso não aconteceu, a primeira bicicleta tinha passado com alguma folga pela rapaz. O que aconteceu foi um efeito similar a uma explosão atômica. Como se todo o ar e os sons e a luz do sol e os olhares de todos os presentes fossem subitamente sugados para aquele ponto em um instante muito rápido, como se estivesse armazenando energia para o choque que veio em seguida. Uma segunda bicicleta veio de encontro ao garoto. Digo desse momento de concentração de energia porque tudo foi para aquele ponto e deve ser loucura, mas acredito que todos viram o que vi, como eu vi. Não sei se perceberam da mesma maneira que eu, mas sinto que todos prenderam a respiração ao mesmo tempo. Um garoto com os olhos estatelados aparentemente colados ao chão. Uma bicicleta em alta velocidade colidindo com ele, liberando uma explosão estática, reconstruindo o ar para todos nós, num único espasmo violento como uma forte onda seguida por outras menores, mais rápidas, de intensidade decrescente. Aquela onda de energia devolvendo a todos nós luz, ar, poesia, sons e eletricidade, fazendo todos tremer em excitação, medo, humanidade e silêncio. Uma oxidação instantânea, manchando e corroendo duas pessoas, sendo exposta e expandindo-se para todos que ali estavam começando um novo dia. O rapaz da bicicleta foi lançado sobre o guidão e além. O garoto que atravessava sendo bruscamente lançado ao chão, sobre a sarjeta. O instante de poesia então estava terminando.
      Findo o momento da poesia, essa coisa (a melhor associação que faço, que li de outros autores, é o "it" que Clarice Lispector descreveu) esse instante-coisa, absoluto, nem passado nem futuro, inatingível e impossível de se nomear porque não é, além do que foi, mas sequer sabemos com certeza se foi. É "it". E assim que começou e terminou, inconsciente para a maior parte de nós (e não sei se pude percebê-lo por completo, mas fiquei comovido por tê-lo percebido o tanto que pude), tudo voltou ao normal, ao cotidiano. E o que mais me impressionou é que foi um instante-coisa poesia talvez de menor intensidade, mas tão igualmente bonito como imaginei que seria.
      Algumas pessoas correram em direção ao epicentro. Só fiquei tocado mesmo porque o primeiro som, o primeiro som que se tornou audível mais uma vez foi um grito estridente, agudo, desesperado, cheio de dor. Era a mãe do garoto que atravessava. Após as primeiras pessoas que se aproximaram, veio essa mulher, atravessando as duas largas pistas para três carros, cada, que compunham a avenida, correndo às cegas, arriscando a própria vida, com lágrimas nos olhos. Ela se aproximou, o garoto segurava o braço. O outro, da bicicleta, parecia confuso. Ambos eram bastante jovens. O primeiro mais. Mas ambos tinham uma expressão de choro no rosto. Um movido pela dor, outro pelo amor. No fundo, ambos movidos pelo que restou da poesia. Como os últimos versos da última estrofe, melancólicos e enigmáticos. Ambos não sabiam, mas tinham feito poesia, tinham se tornado humanos por um instante. E isso lhes doía muito.
      Todos nós ali experimentamos ser humanos com eles, em menor intensidade. Fomos atingidos pelo instante-coisa que eles criaram ali. Fomos agraciados por isso em uma manhã de sol, que parecia ser como toda manhã, de uma segunda-feira como toda segunda. Alguns receberam com maior intensidade, outros com menor. Não posso responder por todos ali, mas sei que dali eu saí com um misto de felicidade e dor, porque presenciei poesia. E pra poesia, entendi como isso: um grande conflito que numa descarga de insanidade nos torna humanos para em seguida, mais uma vez sãos. Sendo assim, compartilho isto com vocês e digo:
      Obrigado.

      Um abraço!


      Gregor.

20100225

A sense of struggle

      Há uma sensação que é difícil definir e não sei se todos os seres humanos conseguem percebê-la ou mesmo controlá-la. Não acho que seja controlável ou passível de antever que isso vai acontecer. É um sentimento de nada, de crise pessoal e profissional. Uma nada errado, de passos em falso e de incompetência. Acredito que todos nós passemos por isso, em pelo menos um momento de nossas vidas e se não são esses pequenos incidentes pessoais que ajudam a construir nosso caráter e nossa visão de mundo, eles ao menos são suficientes para causar alguma auto-reflexão para seguir em frente ou desistir de uma única vez, porque o nada gera algo, uma sensação. Outro dia, encontrei nos olhos de Clarice essa sensação. Clarice sempre fora uma grande amiga minha, até onde posso me lembrar. Sempre tivemos uma relação extremamente espontânea e natural, assim como foi natural nossa aproximação e amizade. Ela sempre tivera uma personalidade incrível, intensa, sincera e carinhosa. Mas de vez em quando ela passava por esses momentos de ligeira depressão. Durava um dia ou uma semana. Era súbito. Aos olhos estranhos, com certeza Clarice parecia apenas uma mulher desesperada por atenção. Eu sabia que não era o caso, mas não sabia bem como e se eu podia ajudá-la.
      Se outras vezes isso já tinha acontecido, por que me importar com essa sensação nos olhos de Clarice desta última vez? O fato é: sempre me importa, sempre me importou e sempre senti a minha fragilidade refletida na dela e além de uma identificação com o problema em si, não poderia simplesmente subjugar Clarice especialmente em um momento tão próprio e delicado. Se por si isso já me era suficiente, neste dia me pareceu infinitamente mais forte, triste, desolado e inevitável. Mas o que alguém pode fazer por outra pessoa uma vez que cada pessoa só é responsável pela própria felicidade e vida? Eu poderia dizer muitas palavras bonitas, bem colocadas. Mas se aprendi algo em dadas circunstâncias seria que neste momento, quando se trata realmente disso e é sincero, são necessários sinceridade e honestidade plausíveis. Nada de eufemismos ou elogios excessivos. No final das contas, pra mim, esta sinceridade é a única coisa que as pessoas devem umas às outras em qualquer situação.
      Abordei Clarice, gentilmente. Ela estava em um furacão de pensamentos confusos, percebia uma tempestade através de seus olhos. A perguntei o que havia. Ela subiu seus olhos avermelhados e tristemente respondeu um curto "nada" e voltou a atenção para o monitor em que ela trabalhava. Pego uma cadeira e me sento ao seu lado.
      "Mesmo?", questiono.
      "Sim, claro. Por que a pergunta?" Clarice me questiona de volta, com alguma agressividade defensiva natural.
      "Ah... Você parece chateada, triste. Está quieta e não sei... Diferente." respondo enquanto tocava seu ombro.
      "As pessoas não são sempre iguais, todos os dias" ela comenta com a mesma dureza anterior, desvencilhando-se de minha mão.
      Fiquei calado por alguns instantes, ao seu lado. Eu estaria sempre ao seu lado, independente de um momento de grosseria ou atitude pouco pensada. Ela sabia disso. E os poucos minutos que passei ali ao seu lado parece que foram suficientes para que ela percebesse isto porque foi Clarice quem me abordou, então.
      "Olha, Gregor..." ela fez uma pausa e continuou em seguida "Desculpe por ter sido grossa contigo é que tá foda".
      "Não se preocupe, Cla... Mas me diga, o que houve?"
      Ela continuou encarando o monitor por algum tempo. Então, como se tivesse se enchido daquilo também, se virou pra mim e falou:
      "Hoje acordei meio deprimida, não sei. Me sinto em uma crise de algum tipo. Na real mesmo, não é nem de hoje. É como se fosse um processo que explodiu agora."
      "E sabe de onde isso veio?"
      "Não sei, nem ideia."
      Calamos os dois. Nossos olhares se cruzavam a três metros de nós, encaravam o nada. Senti uma tremenda angústia como se de fato dividisse a dor de Clarice. Mas eu não dividia. Eu dividia o nada. O nada que é invísivel e material. Quando tudo lhe é arrancado, você tem nada. Quando nada lhe resta, não é vazio. Ele ocupa todo o seu espaço, escapa pelos olhos, cobre os ouvidos, fecha a traquéia e pára o coração. É tão sentimento como o amor ou o medo. Não costuma ser definitivo, mas uma vez que se experimenta, ele nunca se vai, porque há sempre uma parte em nós em que nada fica. Quanto menos você tem, mais espaço você consegue e esse conflito é constante. É difícil viver com o próprio nada já que queremos e buscamos tudo. Buscamos anular o nada, mas como uma arma, o nada só ganha cores dependendo de onde se aponta e da pressão sobre o gatilho. Portanto, é fugaz: quando o gatilho é pressionado e ele ganha suas cores, ele deixa de ser nada e se torna algo. Nada não é bom, tampouco tudo é. Algo é melhor, menos absoluto e dogmático. Há algo em tudo e em nada. É uma medida tão criteriosa e precisa que algo deveria ser uma unidade de base para a grandeza da quantidade de matéria e imatéria, ou usado como uma lente. Dependendo da direção que essa lente aponta, mudam-se as quantidades e os valores. Algo, como tudo e nada, é adimensional. Mas tudo e nada se perdem em valores infinitos, positivos e negativos. O algo pondera.
      Passei a mão nos cabelos de Clarice, beijei seu rosto e deitei em seu ombro, acariciando a sua mão.
      "Você sente alguma coisa?", perguntei.
      Clarice manteve-se em silêncio e parou de se debater. Clarice ponderou.
      "Estou me esforçando para isso. Mas sinto um desejo, uma sensação de me livrar dessas restrições.", ela me respondeu calmamente.
      Eu não a respondi. Apertei sua mão contra a minha e a deixei ali, voltando para o meu trabalho.

      Clarice, você não pôde notar naquele momento, mas o que você percebeu como momento da explosão de um processo foi o momento que você pressionou o gatilho no nada. Algo já estava em processo e mesmo que eu não pudesse dizer nada para ajudá-la, sequer precisei tentar fazê-lo, você já estava caminhando. Eu não fiz nada, você fez algo e fiquei tão feliz porque o algo não é instantâneo, mas já é o algo. E leva tempo, Clarice. Também sinto minhas crises me escapando pelos olhos, cobrindo meus ouvidos, fechando minha traquéia e parando meu coração, assim como você. Sei como você se sentia, apesar de não ter sentido em seu lugar. E naquele momento eu percebi que você já estava em algo e isso me tranquilizou. É como um acalanto. É reconfortante saber que alguém que amamos tanto conseguiu encontrar o algo, ainda que todos nos perdamos vez ou outra. Clarice, você já estava em algo e em algo agora está. Suas cicatrizes deixam marcas em todos nós, tenho suas cicatrizes invisíveis em mim. E sei que você tem as minhas. E deixamos cicatrizes e marcas em tantas pessoas que não percebemos que as cicatrizes são lembranças de que nada aconteceu, mas que já passou. E as cicatrizes que recebemos são lembranças que não estamos solitários. Às vezes você vai se sentir sozinha, mas jamais estará solitária.

      Olhei para trás e Clarice estava olhando mais uma vez para o nada. Em seguida, desvencilhou o olhar, o repousou em mim e sorriu. Clarice tinha algo e subitamente, ela o sabia.

Acidentes

      Minhas questões sempre foram demasiadamente humanas, mas não físicas ou materiais. Demasiadamente humano, assim como somos e nem sempre possamos admitir. Sempre me interessei pelas falhas, pelas pequenas belezas acidentais, pelo acidente de viver e morrer, adoecendo e sarando de amores, fugas, tempestades e gripes. Pela pequena morte que nos aguarda, pela pequena vida que surge. Essas miniaturas todas, coexistindo sem saber se de fato existem.
      Devo estar ficando louco, mas recentemente fiquei extremamente interessado em acidentes de carro. Mais especificamente, atropelamentos. A súbita interrupção de uma pessoa, de uma vida. O súbito momento que o motorista não viu aquela pessoa atravessando a rua ou simplesmente cruzou o sinal vermelho e atingiu alguém. O rompimento do silencioso pacto entre motoristas e pedestres, a violação instintiva das regras e da vida, a destruição simples de uma vida igualmente tão simples quanto complexa. Alguns instantes entre a pura ignorância da existência para uma ligação emocional tão forte. Instantes com o tempo de um choque; um contato tão violento que rompe a carne, tinge o metal, encharca os olhos e turva a visão. Você consegue ver a beleza disso tudo? Não desejo atropelar ninguém, nem desejo a minha morte, sequer aprecio observar atropelamentos alheios, não se trata disso. É apenas dado fato que subitamente considero fascinante, de extrema beleza, que me causa comoção. Me parece simplesmente poesia. Não se trata da morte ou dos aspectos negativos. É comovente como isso pode acontecer com tantas coisas ao redor, tudo torna-se suspenso. Ninguém entende muito bem, todos temem por encarar a própria mortalidade ali, num pobre coitado. E pouco depois, se foi.
      E essa poesia acontece sem ninguém esperar, sem preparativos, rituais ou expectativas. É uma poesia pura.
      Note que não estou citando suicidas, maníacos ou pervertidos. Considero-os dentro de suas próprias categorias, longe desta. Esta trata-se da delicadeza da carne e dos ossos em direta justaposição ao peso das máquinas e do metal. O acaso violentando mutuamente carne e metal, sacralizando culpa e redenção. Há uma beleza tão abstrata nisso que após o baque é possível deitar sobre o silêncio que toma o lugar. Um silêncio tal qual se todos, naquele instante, tivessem contato com a poesia e não conseguissem mais exprimir as palavras usuais nem os ruídos rotineiros. Nos admitimos humanos para então apenas sê-lo mais uma vez, inconscientemente.
      Todos os sons voltam e a poesia termina. Há apenas um corpo no chão, um homem culpado atrás do volante e uma multidão confusa sobre a situação.
      A confusão é justa. Muitos somos os acidentes de uma relação e sempre buscamos o controle sobre todas as etapas a seguir. É realmente confuso quando percebemos a miniatura das coisas. Quando percebemos em um único instante que o choque entre gente e carro, carro e chão, chão e gente foi apenas uma forma e exibição extremas do contato e ligação que há entre tudo e todos, constantemente em movimento ainda que parecessem imóveis e distantes. A física quântica e algumas religiões colocam isso, mas só conseguimos perceber isso através da poesia ocasional que estremece nossas bases.
      E ironicamente, apesar do livre e constante contato, mesmo em um atropelamento, nós jamais nos tocamos. Permanecemos como somos, todos ligados entre si, seja gente, seja pedra. E sempre distantes uns dos outros, sozinhos. Do nascimento ao fim da vida.
      Talvez a maior razão da dificuldade de nos admitirmos humanos. Porque dói.