São Paulo, 08 de março de 2004.
Li um texto publicado na edição de Janeiro chamado "Acidentes" e gostaria de dividir algumas palavras com vocês porque finalmente entendi de certa forma do que se trata.
Eu fiquei bastante intrigado com essas linhas e até esta manhã eu não sabia bem o que pensar. Talvez seja verdade, o autor tenha alguma razão em suas palavras.
Estava no ponto de ônibus esperando o meu transporte chegar. Estava amanhecendo. Apesar de já estar bastante claro, era possível perceber alguns raios de sol amarelados que cortavam o ar, entre as folhas e saindo de algumas nuvens. Um dia bastante bonito. Subitamente, aconteceu. É difícil expressar a euforia que sinto em relação a isso e é provavelmente impossível dividir isso com alguém, mas preciso tentar. Não foi um atropelamento entre automóvel e gente, mas entre gente e bicicleta. Não houve vítimas fatais, ninguém sequer se feriu de maneira grave. Mas mesmo em evento tão menor, a energia gerada foi tão impressionante e tão... Delicada. Quase invisível aos olhos. Os fatos vocês já sabem, vou tentar descrever o que pude observar além do óbvio.
Um rapaz atravessava na faixa de pedestres, todos os carros estavam parados no semáforo. Ele atravessava e a um metro, talvez um metro e meio da calçada, pareceu-me que ele parou. Uma bicicleta passou e passou por nós. Não sei dizer bem o que aconteceu, no entanto é a parte mais bonita de todas. Parece que eu o percebi parar, mas provavelmente isso não aconteceu, a primeira bicicleta tinha passado com alguma folga pela rapaz. O que aconteceu foi um efeito similar a uma explosão atômica. Como se todo o ar e os sons e a luz do sol e os olhares de todos os presentes fossem subitamente sugados para aquele ponto em um instante muito rápido, como se estivesse armazenando energia para o choque que veio em seguida. Uma segunda bicicleta veio de encontro ao garoto. Digo desse momento de concentração de energia porque tudo foi para aquele ponto e deve ser loucura, mas acredito que todos viram o que vi, como eu vi. Não sei se perceberam da mesma maneira que eu, mas sinto que todos prenderam a respiração ao mesmo tempo. Um garoto com os olhos estatelados aparentemente colados ao chão. Uma bicicleta em alta velocidade colidindo com ele, liberando uma explosão estática, reconstruindo o ar para todos nós, num único espasmo violento como uma forte onda seguida por outras menores, mais rápidas, de intensidade decrescente. Aquela onda de energia devolvendo a todos nós luz, ar, poesia, sons e eletricidade, fazendo todos tremer em excitação, medo, humanidade e silêncio. Uma oxidação instantânea, manchando e corroendo duas pessoas, sendo exposta e expandindo-se para todos que ali estavam começando um novo dia. O rapaz da bicicleta foi lançado sobre o guidão e além. O garoto que atravessava sendo bruscamente lançado ao chão, sobre a sarjeta. O instante de poesia então estava terminando.
Findo o momento da poesia, essa coisa (a melhor associação que faço, que li de outros autores, é o "it" que Clarice Lispector descreveu) esse instante-coisa, absoluto, nem passado nem futuro, inatingível e impossível de se nomear porque não é, além do que foi, mas sequer sabemos com certeza se foi. É "it". E assim que começou e terminou, inconsciente para a maior parte de nós (e não sei se pude percebê-lo por completo, mas fiquei comovido por tê-lo percebido o tanto que pude), tudo voltou ao normal, ao cotidiano. E o que mais me impressionou é que foi um instante-coisa poesia talvez de menor intensidade, mas tão igualmente bonito como imaginei que seria.
Algumas pessoas correram em direção ao epicentro. Só fiquei tocado mesmo porque o primeiro som, o primeiro som que se tornou audível mais uma vez foi um grito estridente, agudo, desesperado, cheio de dor. Era a mãe do garoto que atravessava. Após as primeiras pessoas que se aproximaram, veio essa mulher, atravessando as duas largas pistas para três carros, cada, que compunham a avenida, correndo às cegas, arriscando a própria vida, com lágrimas nos olhos. Ela se aproximou, o garoto segurava o braço. O outro, da bicicleta, parecia confuso. Ambos eram bastante jovens. O primeiro mais. Mas ambos tinham uma expressão de choro no rosto. Um movido pela dor, outro pelo amor. No fundo, ambos movidos pelo que restou da poesia. Como os últimos versos da última estrofe, melancólicos e enigmáticos. Ambos não sabiam, mas tinham feito poesia, tinham se tornado humanos por um instante. E isso lhes doía muito.
Todos nós ali experimentamos ser humanos com eles, em menor intensidade. Fomos atingidos pelo instante-coisa que eles criaram ali. Fomos agraciados por isso em uma manhã de sol, que parecia ser como toda manhã, de uma segunda-feira como toda segunda. Alguns receberam com maior intensidade, outros com menor. Não posso responder por todos ali, mas sei que dali eu saí com um misto de felicidade e dor, porque presenciei poesia. E pra poesia, entendi como isso: um grande conflito que numa descarga de insanidade nos torna humanos para em seguida, mais uma vez sãos. Sendo assim, compartilho isto com vocês e digo:
Obrigado.
Um abraço!
Gregor.