(nota de introdução: hoje eu prestei vestibular, de novo. Conclui o meu curso no ano passado, hoje prestei Cinema Digital. Não fui brilhante na prova nem nada, mas a redação ficou até boa. Era uma tira do Laerte publicada em agosto passado. Era necessário fazer uma dissertação, uma narração ou uma carta. Escolhi narração e as condições eram: eu era o cara do último quadro e meu nome era Armando. E eu tinha que narrar aquilo tudo, quem era o personagem do primeiro quadro, etc. Fiz o texto e como pude trazer o rascunho, decidi publicá-lo aqui. Caso eu encontre a tira do Laerte, a deixarei aqui para referência, mas no momento, só posso mostrar o texto. Ainda que eu não adore textos que são feitos obrigatoriamente e o tenha escrito em 45 minutos, acho um tanto interessante. Boa leitura.)
Estou sentado em minha sala junto ao telefone. Fim. Este é meu emprego, minha vida, em linhas gerais. Não há muito além disso, mas não estou realmente incomodado com esta situação, ao contrário de minha esposa que repetidas vezes me disse "Armando, querido, sua vida é chata. Seu emprego é chato." Bobagem, eu a disse. Faço o que faço e faço muito bem. Sou responsável por atender ligações e transcrevê-las. De maneira geral, não me é permitido interferir nas ligações porque não me é permitido, por contrato, interferir na vida. O mínimo de presença me garante o máximo de veracidade na transcrição da vida. Se me perguntam o que faço, então, é isso: narração antropológica, do homem, do mundo, da vida. Através de um telefone, claro.
Acho um emprego justo, não tenho reclamações. A remuneração é adequada e o risco de acidentes é nulo. Já caí da cadeira alguma vezes sem nenhuma consequência maior. Certa vez, eu estava aqui sentado e... um momento, o telefone toca; levo o monofone à orelha, caneta em punho.Um voz desesperada me pede repetidas e infinitas vezes "Socorro! Socorro! Socorro!". Deve ser algum coitado ligando de algum orelhão. Pela sua voz, posso afirmar com bastante convicção de que ele está em uma situação de fuga, provavelmente há um homem armado à sua espreita, o coitado sabe que não tem chance e recorreu ao telefone público mais próximo em uma tentativa desesperada e, se me permite, pouco sábia de conseguir algum amparo. Seus olhos miúdos em pânico devem contrastar com sua bocarra escancarada emitindo seu suplício. Típico.
O homem continua seu apelo e, ainda que eu não seja pago para fazer esse tipo de narração sobre as pessoas, eu o faço porque considero isso um bônus. Os gritos tornam-se mais aflitos e intensos, "socorrossocorrossocorro!", quase indecifráveis. Deve terminar logo. Um último "socorro" é interrompido por um forte estouro, seguido por um ruído e um baque. Ouço passos se aproximando. O telefone é desligado. Termino com um breve "22 de agosto de 2008. 18 horas e 33 minutos".
Através das linhas telefônicas e dos postes é possível fazer tal amostragem da vida que gosto de pensar que sou um Darwin contemporâneo, registrando não a evolução mas a estagnação da espécie. Aliás, onde eu estava? Ah sim! Certa vez, eu estava aqui sentado e subitamente... um momento, o telefone toca; levo o monofone à orelha, caneta em punho. Penso "será que não vão me deixar terminar minha história?!"
A voz fala com desespero. Transcrevo suas palavras sem interferir, etc., etc.