20051117

"Breve descrição histórico-psicológica de personagens"

     Dolores mora com a mãe, Rosa, em um pequeno apartamento, na área antiga da cidade, no terceiro andar. No andar superior, mora Elisa e Fernando, casados a pouco mais de dois anos. Foi um casamento arranjado às pressas, pois a garota estava grávida. Não que ela não o amasse, e vice-versa, mas provavelmente, se não houvesse criança nenhuma, não haveria nenhum relacionamento. Mesmo assim, um mês ou dois depois que eles haviam se mudado, a garota acidentou-se, perdendo o bebê. Ela tropeçou na escada e assim como a criança veio, foi. No entanto, Elisa não recobrou o humor, ficando em um estado semivegetativo, um tanto cataléptica, voltando a si, de tempos em tempos, por instantes, falando palavras desconexos por um curto período de tempo, solitária, impulsiva, entrando em choque novamente, em seguida.
     Seu marido, um rapaz de 21 anos, precisa cuidar da esposa, portanto, não trabalha. A renda do casal é oriunda de uma mesada oferecida pelos sogros do rapaz, tão bem intencionado. Ainda assim, provavelmente por súbitas fraquezas de caráter, Fernando gasta o dinheiro com prostitutas e deixa a mulher abandonada. Não inteiramente abandonada, afinal, ele está sempre no apartamento. Inicialmente, tinha a delicadeza de satisfazer-se escondido, deixando a mulher no quarto e comendo as putas na sala. Até que certa vez, num descuido ou por pura perversão, Elisa estava na sala. A prostituta, obviamente, percebeu a presença da mulher no cômodo e olhava-a com curiosidade, que por sua vez, estava com os olhos vazios, fitando o nada, assim como os catatônicos fazem. O rapaz, um recém-descoberto voyeur às avessas, tornou aquilo um hábito.
     Esse hábito logo ficou conhecido por todos no prédio, é claro. Mas não era tão repudiada por todos, aparentemente. O assunto tornou-se um tabu instantâneo e afinal, o rapaz estava na flor da idade, precisava satisfazer-se sexualmente.
     Não é necessário dizer que Dolores era contrária à opinião de todos. De início, argumentava e discutia, incansavelmente, com todas aquelas pessoas, mas no fim, percebeu que era melhor seguir seu caminho em silêncio do que punhetar aqueles pervertidos aos gritos. E não era à toa; desde que Elisa mudou-se para o prédio, Dolores gostou da garota. E apesar de ser considerada até mesmo por parentes e pessoas próximas, uma pessoa com falta de compaixão e sensibilidade, de excessiva racionalidade, Dolores cumprimentava Elisa e realmente sensibilizou-se quando ela perdeu o bebê. Talvez, fosse porque Dolores, há alguns anos, viu-se encurralada por uma gravidez não desejada, porém não teve coragem, ou vontade, de casar-se e antes que alguém pudesse notar, ela estava livre de qualquer aborrecimento. Não se abalou tanto quanto a vizinha, mas do alto de sua benevolência podia compreender o sofrimento alheio porque era um sofrimento perfeitamente justificável.
     Sendo assim, Dolores repudiava Fernando e alimentava e limpava Elisa, quase que diariamente. O rapaz nunca trancava a porta e mesmo que trancasse, Dolores tinha uma cópia das chaves. Os vizinhos também sabiam que Dolores ajudava Fernando, e também achavam completamente natural, pois um rapaz de apenas vinte e um anos não poderia, de qualquer maneira, cuidar de uma mulher doente assim, sozinho. Dolores achava-o um escroto, assim como todas e quaisquer outras pessoas do prédio, incluindo ela. Aliás, Dolores tinha em Elisa uma visão de pureza e bondade máxima. Nunca conversou com ela, anteriormente, porém Dolores era capaz de decifrar uma pessoa apenas pelo olhar, pela sua maneira de andar, pelo tom de sua voz. Vai ver era por isso que ela cuidava da amiga com tanta devoção.
     A mãe de Dolores não fugia à regra: Também era uma escrota. E cada escroto tem suas próprias razões para carregar esse título, e felizmente a perversão não era um motivo da escrotidão da mãe. Ou melhor, pelo contrário. Não era puritana ou pervertida, muito menos amorosa com a família ou com um vagabundo qualquer na esquina; Dezessete anos após o divórcio, Rosa tornou-se indiferente à tudo, à todos, à si mesma. Lentamente, despiu-se de qualquer ambição e atualmente, havia se colocado de maneira tão alienada em relação aos seus sonhos e desejos, que contribuía apenas às estatísticas demográficas. Seu estado não era assim tão diferente do de Elisa, por exemplo. Ela vivia em um estado vegetativo não declarado e mantinha-se longe de uma completa catatonia por pequenos fatores como, por exemplo, a voluntariedade de seus movimentos, a consciência de caminhar até o banheiro quando precisa ou as conversas diárias com os vizinhos, que não eram muito mais produtivas que a verborragia involuntária de Elisa.
     E por esses pequenos detalhes, Dolores tinha pena da mãe. Achava-a patética, uma carcaça velha e solitária que arrastava-se sobre seus chinelos, usando um vestido e uma espécie de avental, com bolsos grandes, onde guardava ferramentas básicas como chaves de fenda e alicates para consertar um detalhe ou outro, aqui e ali, lenços de papel, remédios diversos para todo tipo de enfermidade, existentes e desistentes, pregadores de roupa e algumas moedas, que provavelmente não tinham mais valor, enfim, carregava todo tipo de bugiganga, muito bem organizadas, aparentemente, para dar algum sentido e vocação à sua vida mas que no fim, não acrescentava em nada, mantendo-se nula e ordinária.
     Apesar disso, Rosa dizia se preocupar com a filha. Provavelmente, tinha um bom coração mesmo ou era só ignorante demais para perceber algo tão subjetivo como criar uma filha com tanta indiferença por cerca de dezessete anos. Nesse tempo, uma ou três vezes, envolveu-se com outros homens, sem nunca sentir-se satisfeita. Sentia-se satisfeita ao assistir televisão, isso sim. Sentava em frente ao aparelho e passava longas horas, alienando-se do mundo e de si mesma. Acostumou-se a isso. Percebeu que longe de si e do mundo, sem nenhum pensamento próprio ou ambição, podia considerar-se feliz.
     Rosa não viu quando a filha passou por uma crise emocional relativamente rápida por conta de um aborto bem sucedido e apressado. Muito menos quando Dolores pintou os cabelos de vermelho fogo, assim que terminou a escola. Mais ou menos na mesma época em que ela procurava um emprego e considerava prostituição um trabalho honestíssimo e em seguida, quando trabalhava de caixa em um supermercado, que devia ser um trabalho muito mais divertido, mas manteve-se no mercado porque, no fim das contas, não se achava suficientemente atraente para alguém pagar para comê-la. Rosa também não viu isso.
     Depois do emprego no mercado, onde ela trabalhou por um ano, pouco mais, Dolores conseguiu um emprego de garçonete em uma lanchonete/boteco ao lado de sua casa. Não tinha que pagar condução, o salário era um pouco melhor e ela não tinha que ficar com o rabo pregado numa cadeira por 8 horas seguidas. Além do que, seu chefe era um rapaz mais bacana. Tinha lá seus trinta e cinco anos, uma lanchonete mal-localizada, mas com clientes fiéis, pagava suas contas e sobrava algum dinheiro para suas diversões e perversões pessoais. Tinha um sorriso feio e não tinha um futuro promissor pela frente. E ele sabia disso. Aliás, qualquer idiota podia dizê-lo sem prestar muita atenção. Porém era diferente, porque apesar de tudo, ele tinha suas ambições pessoais, ele sabia o que ele queria da vida. Ele queria ser famoso, o típico sonho suburbano de pelo menos 90% da população mundial. E assim como 88% deles, não tinha o menor talento para nada. Não sabia cantar ou dançar, tocar um instrumento ou jogar bola. Desenhava como um retardado e escrevia poesias cheias de eufemismos desnecessários, cacofonias e lugares comuns. Não sabia atuar tampouco programação. Tinha tanta habilidade matemática quanto um cavalo e sabe-se lá como conseguiu abrir um negócio e manter-se vivo por tanto tempo. Não era rico, mas também não passava fome. Apenas ambicionava demais e dizia ter aquilo como temporário. Afugentava os pensamentos de desilusão e fracasso com mais ilusões e pseudoprosperidades, tal qual uma pessoa autoflagelando-se para esquecer uma dor de cabeça ou uma incapacidade de qualquer espécie.
     No entanto, e isso Rodolfo parecia ser incapaz de perceber, ele tinha uma extrema habilidade de lidar com as pessoas, com qualquer tipo de pessoa. Apesar de perder a cabeça de vez em quando, e ele tinha suas razões, no geral ele era comedido e sabia portar-se numa sociedade dita-evoluída. Provavelmente era por isso que seu negócio manteve-se sólido por tantos anos a fio. E Dolores achava isso bonito. Provavelmente foi por isso que aceitou o emprego. Uma coisa carismática mesmo, uma maneira apaixonada de ver as coisas e falar sobre elas. No fundo, todos apreciavam isso, mas todos são ignorantes e egoístas demais para gastar alguns minutos realmente prestando atenção nas outras pessoas ao seu redor. Ou então são antagonistas a isso. Pessoas desprovidas de qualquer sensibilidade, que assim como a grande maioria, não têm uma vida própria e dedicam-se a cuidar da vida alheia. Os poucos minutos de reflexão que todos deveriam fazer sobre as pessoas ao seu redor não são mais do que alguns segundos parcos que rapidamente transformam-se em informação fútil, do tipo que todo mundo gosta de saber, mas não gostam de admitir. E no prédio de Dolores, como via de regra, morava uma senhora, que no fundo nem tão velha era, que ficava de conversa fiada pelos corredores e arredores, com qualquer intrometido que cruzasse seu caminho. Seu nome era Marta e sua idade, não definida. Porém, passava o dia vivendo da pensão que recebia mensalmente, pela morte do marido em um acidente na fábrica de assentos sanitários, que matou dois. Ângelo e Samuel, respectivamente o finado esposo e o finado amante. Abalada pelo duplo choque, Marta decidiu, enquanto chorava sobre o caixão do marido, que passaria a ser temida pelas pessoas antes que todos pudessem de alguma maneira atacá-la e/ou esquecê-la. Desde então, há cerca de 13 anos, ela supre sua carência cuidando da vida alheia, pois sua vida pessoal é algo doloroso demais para ela conseguir lidar com. Seu apartamento ainda vive de reminiscências do passado. Na sala, um retrato de Ângelo, imaculado, junto de suas cinzas e um pequeno altar, onde ela, diariamente acende uma vela para o defunto e semanalmente troca as flores. No quarto, longe dos olhos dos curiosos e de Ângelo, o retrato de Samuel permanece olhando-a enquanto ela dorme, assim como ele gostava de fazer, antes de morrer. A casa também está inalterada, os móveis, velhos e rangendo, são os mesmos, com a adição de alguns buracos no estofamento do sofá da sala e pó, em toda a casa. Nem as roupas do marido ela tirou do armário. Tudo continua lá.

20051109

Chave no Coelho

Jóia!


Olá, amigo.
Você já notou a pequena coluna de fotos que se encontra no menu ali ao lado?

Não?

Já?

E os comentários, agora provisórios, porém funcionando? Notou?



Eu já devia imaginar.

20051104

Dolores.txt

   Rosa entrou em casa, visivelmente nervosa. Suas mãos, úmidas pelo suor, seguravam a bolsa junto ao corpo, cansado e dolorido, após um longo dia de trabalho.
   Ela encontrou o marido na cozinha, com uma lata de cerveja numa das mãos e um sorriso besta no rosto. Rosa olhou-o com desprezo, ódio. Seu rosto, antes sempre sereno, abrigava uma expressão amarga, cheia de repulsa. O marido a olhou, sem compreender o que acontecia e aproximou-se da esposa.
   A mulher nada conseguiu dizer; apenas largou a bolsa, olhando seu homem fixamente nos olhos para então virar-se e ir para seu quarto.
   Sentada à mesa, Dolores, a filha do casal, assistiu à cena, atônita. Viu o pai abaixar-se para recolher a bolsa e passou alguns minutos encarando o objeto, pensativo. Uma figura imóvel, solitária, no meio da cozinha. Para Dolores, aquilo durou horas e nada precisava ser dito, afinal, aquilo parecia ser mesmo inevitável. Sentiu medo.
   Durante a madrugada, ouviu os pais discutirem, novamente. Não era a primeira vez e Dolores tanto desejava quanto temia que fosse a última. A confusão, aquelas palavras feias, a voz chorosa enquanto firme da mãe. O som grave do pai, incisivo.
   A garota podia sentir a mágoa pulsando junto de seu coração. Uma mágoa adquirida daquele medo. A sensação de traição, destruição. Uma necessidade urgente de liberar-se, abraçar os pais e dizer, com sua voz, típica de uma garota de seis anos, Tudo vai ficar bem, acalmem-se. No entanto, não conseguia se mover. Não queria se mover; queria deixar aquelas sensações ruins para trás, Tudo ficará bem pela manhã, você só precisa dormir, Lolita, um pouco de sonhos e sono lhe fará bem, você verá. Queria rezar, mas não lembrava de nenhuma oração. Contentou-se em cantar uma canção, para si, um tanto melancólica. Tentar fazer os gritos desaparecerem e estar tudo normal, amanhã, de manhã. A dona Aranha subiu pela parece, veio a chuva forte e a derrubou; Rosa, cala essa boca, não vou aceitar isso, de maneira alguma; já passou a chuva, o sol já está saindo; não me manda calar a boca, você não tem saída e sabe disso; e a dona Aranha continua a.
   Pela manhã, tudo estava silencioso, novamente. Dolores levantou-se, com cuidado e desceu até a cozinha. O pai já tinha saído pra trabalhar. A mãe, de olhos vermelhos, encarava uma xícara de café como se fosse veneno. Nenhuma palavra foi dita quando a garota adentrou o recinto e nem mesmo quando sentou-se à mesa. Mesmo assim, Dolores seguiu seu ritual. Encheu um copo de suco de laranja, tomou-o lentamente, gole por gole, até esvaziá-lo por completo. Cortou um pão no meio, abriu-o, passou margarina, jogou achocolatado em pó. Enfiou no microondas. Trinta segundos.
   Tirou o pão e sentou-se novamente à mesa. Ao lado da mãe. Olhava fascinada o vapor sair do pão aberto, com o chocolate misturado à gordura, uma aparência repugnante e ainda suculenta. Dolores fechou delicadamente o pão e devorou-o da mesma maneira calma e cuidadosa que teve para com o suco. Mastigava cada pedaço, trinta, quarenta vezes, aproveitando a mistura de sabores até aquilo virar uma massa homogênea e insípida. Então engolia.
   Na terceira mordida, seu ritual foi interrompido, brevemente, pela voz áspera e direta da mãe, com cheiro de álcool e tristeza.
   -Seu pai não volta mais.
   A garota encarou a mãe, que voltara o olhar para a xícara de café e não sabia o que dizer. Quis gritar, tentar trazer o pai de volta, fazer a mãe feliz. Então engoliu. Mordeu outro pedaço do pão, dessa vez sem se concentrar, sem se divertir. Não conseguia mastigar com o cuidado e delicadeza usuais; não conseguia sentir mais esses prazeres nessas pequenas coisas; não mais. Não conseguia olhar para a mãe, tampouco para suas mãos. Se sentia suja, culpada. Sentia pena de si mesma, daquela mulher decadente à sua frente. Estendeu uma mão até alcançar a jarra de leite, despejando timidamente o líquido num copo limpo, de tom esverdeado.
   Seus movimentos eram constrangidos, ela não devia estar ali, ela não queria estar ali, se sentia uma estranha, uma indigente. Empurrou a cadeira devagar, fazendo-a ranger, sonorizando a cozinha até então silenciosa, como gemidos culpados e dolorosos.
   Cautelosamente, aproximou-se do microondas com o copo de leite na mão. Receosa, colocou o copo na bandeja do aparelho, tentando evitar qualquer cacofonia desnecessária. Contudo, o som do vidro fez-se ouvir, constrangendo ainda mais a garota.
   Ligou o aparelho e encarou os números arrastando-se no marcador digital. Não via mais sentido naquilo. Na vida. Tudo parecia suficientemente idiota e cretino, vazio de qualquer sentido mais profundo que não fosse o do olhar. Dolores sentiu-se idiota por não ter percebido isso antes. Era completamente óbvio! Os segundos no display corriam em ritmo de valsa. Dois pra lá, dois pra cá, infinitamente bailando. E sempre foi assim. Sempre será. E nessa dança, um pouco antes ou depois, as coisas se tornaram claras para ela. A vida ficou rasa frente aos seus olhos, ainda novatos e agora tão esclarecidos, assimilando rapidamente aquela valsa e conseqüentemente a vida.
   Foi aí, mais ou menos aí, que Dolores percebeu que a vida era monótona.

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