20040531

A Caixa

I.


James é um detetive. Meio preguiçoso, mas quase ele consegue completar seus casos.
David é um maníaco. Sádico e bem vestido, está sempre acima de qualquer suspeita.
Estela é bonita. Ela namora James, secretamente, e sonha casar-se com ele, em breve.
Eles vivem na mesma cidade, Graceland. Estamos na década de 50.

II.


David passou a madrugada planejando. E o plano seria de fácil execução. Ao ouvir os pássaros cantarolando lá fora, virou-se para a janela e viu os primeiros esboços do que seria um dia ensolarado. A bomba-relógio estava quase pronta. Tinha pólvora suficiente para explodir um carro-forte. Mas as suas intenções eram outras. Terminado o artefato, ajustou-o para se autodetonar em uma hora. Ele o colocou, cuidadosamente, em uma caixa de bolo bonita e cor-de-rosa. Amarrou a caixa, colocou-a embaixo do braço e saiu à rua em direção a confeitaria. Olhou para trás para ver se não havia alguém, mas estava apenas seu prédio se afastando lentamente. O frio da madrugada ainda perdurava no ar.
David chegou a confeitaria e entregou a caixa a senhorita do balcão. Seu coração ainda doía do amor não correspondido. Agora ele teria sua vingança. Não suficiente em seu ato, saiu da padaria e dirigiu-se ao primeiro telefone público que encontrara.

III.


6:23. O telefone na delegacia toca.
-Alô?
-Aqui do olho-mágico do meu apartamento eu testemunho Roma arder em chamas. Enquanto não vejo Nero em cinzas eu não ligo pros bombeiros. Uma hora.
-Como?
-Enquanto a fogo não se alastra, Nero não vê o perigo. Mas o bolo, o qual não se come, se consome. A caixa esconde a faísca do resto do verdadeiro amor.--clic.
-Alô? Alô? Merda.
James olhou afoito ao redor. Ele não sabia bem o que fazer. Ele tinha um maníaco solto por aí. Ele avisou seus colegas. Mas pelo visto ninguém estava a fim de escutar a sua história. Apenas um policial o ouviu e deu crédito. Seu nome era William. William e James subiram correndo no carro e disparam rua abaixo. Procurariam por todas as caixas de bolo que fossem necessárias.
Já eram 6:41.

IV.


A senhorita do balcão chamava-se Ruth. Ela recebeu a caixa e deixou lá de lado. O bolo não era pra ela mesmo. Era pra Estela. E a Estela estava em casa. Ela chamou o menino.
-Menino, me faz um favor. Leva essa caixa pra Estela. Um moço a deixou aqui pra ela, mas ela não tá. Eu te dou uns trocados
-Tudo bem!
E o garoto, aparentemente de uns 9 anos, talvez 10 pegou a caixa e seus trocados. Ele parou na banca de jornal. Comprou dois chicletes e um gibi. Passando em frente a Igreja, o sino bate. Anuncia as 7 horas. Ele sorri. Parece que foi ele que causou o sino. Ele precisa pegar o bonde, que está passando já, então sai correndo balançando a mão e gritando. Consegue puxar-se para cima do bonde a tempo. Senta-se ao fundo do transporte com a caixa sobre as pernas. Mascando chiclete meio ofegante, o garoto fala a si mesmo:
-Que bom que eu consegui pegar o bonde. A Estela mora do outro lado da Cidade. Eu ia levar umas quatrocentas horas pra chegar lá.
Ele abre o gibi satisfeito, meio desajeitado por causa da caixa.

V.


James está vagando por aí, e William está mais empenhado que ele na investigação em outros lugares. Então, ele resolve parar na confeitaria.
-Diabos, já são 7:05 e eu ainda não comi. Só um bolinho e eu sigo pro serviço. Bom dia, um bolinho de chocolate, por favor.
-Bom dia! Chocolate com café ou chocolate com creme?
-Chocolate com creme, por favor. Ah, falando em café, me dá um, por favor, também.
-É claro!
-Ah, Ruth, me dá também um bolinho de café. Eu estou faminto.
-Faminto, deve estar, trabalhando a madrugada toda. Suas olheiras parecem dois túmulos. Deus me livre. Mas meus bolinhos são mesmo especiais. Vou te dar um caprichado. Não deve ser tão caprichado quanto o bolo que foi deixado para a Estela aqui de manhã, mas já é de bom tamanho.
-Bolo para Estela?
-É, um senhor deixou uma caixa aqui. "Para Estela" dizia o cartão. Deve ser mais um admirador dela. Uma caixa linda, bem embrulhada. Um senhor muito distinto eu diria.
-Puxa. Ela é mesmo uma mulher e tanto. Bem, obrigado pelos bolinhos! Quanto eu lhe devo?
-Ah, 5$ pagam e a gente não fala mais nisso!
-Hahah, tudo bem, Ruth, obrigado. Bom dia. Ah, Ruth, você tem horas?
-São 7:12, em ponto, detetive!

VI.


O menino está muito curioso e começa a mexer na caixa, para tentar dar uma espiadela em bolo certamente tão bonito e evidentemente pesado. Ele afasta um pouco as fitas que amarram a caixa e começa a levantar uma pontinha, lentamente, só uma espiadela.
-MENINO! O que você tá fazendo?
-Nada, Sra. Hemmingway, eu estava apenas arrumando um pouco os enfeites da caixa.
-Oras, menino enxerido. Pare de ficar fuçando no que não é seu. Para quem é este bolo?
-É para a Estela. A D.Ruth pediu que eu entregasse a ela. A idade deve estar pesando...
-Oras, não diga tal asneira. É claro que ela não pôde entregar a caixa porque ela precisa cuidar da confeitaria.
-Pode ser. Mas eu não me importo, ela me pagou para isso mesmo!
-E você bisbilhotando.
-Não, nunca. Eu sou um menino de palavra!
-Hmpf, vejo a palavra que você tem.. Minha nossa, esse bonde vai parar de novo pra mais gente subir? Assim a gente não vai chegar nunca!

VII.


James sobe no bonde. E senta-se no primeiro acento.
Em seguida, sobe David e senta-se ao lado de James, no único acento disponível.
-Dia bonito, hein?
-É, um dia esplêndido. Realmente. Mas o que o faz acordar tão cedo em um domingo?
-Ah, negócios. Precisava resolvê-los antes de segunda-feira.
-Logo imaginei! Você realmente parece ser um homem distinto, de negócios! Eu nunca falho!
-É, realmente, nunca falha! Mas e você? O que faz acordado tão cedo?
-Ah, eu tenho uns problemas pra resolver. Porém, daqui a uma hora mais ou menos eu vou à casa de minha amada, pedi-la em casamento.
-Puxa! Meus parabéns!
-Pois é, estou animadíssimo, já vou para lá, agora. Depois eu resolvo os meus tais problemas.
-É verdade, Sr..., Acho que nós não fomos apresentados.
-Sr. Smith. Mas pode me chamar de James.
-Prazer em conhecê-lo, James, me chamo David.
-Igualmente.
-Mas então, continuando, acho que todo homem precisa resolver suas felicidades antes dos problemas. A não ser que a felicidade seja parte do problema.

VIII.


-Puxa, esse bonde anda muito lentamente. Veja só, já tô até ficando com barba de tanto esperar.
-Oras, deixe de dizer bobeiras, menino! O bonde está no ponto, no horário de sempre.
-Só se for na tartarugolândia.
-Mas eu estou falando sério. Pareço ser uma senhora de brincadeiras? São 7:19 e nós estamos passando em frente à rua Nashville.
-Rua Nashville?? Putz! é onde eu desço! Adeus, Sra. Hemmingway!
O garoto desce, correndo.
-A caixa, menino! Você esqueceu seu bolo aqui!
-Minha nossa! A caixa!
O bonde já está longe.

IX.


-Puxa! Toda essa gritaria me acordou! Eu acabei de passar do meu ponto. Vou ter que esperar o bonde dar toda a volta.
-Desculpe se eu o atrapalhei, James.
-Ah, imagine! que horas são agora?
-São 7:20.
-Viu só? Nós é que perdemos a noção do tempo papeando sobre a Estela.
-Estela? Qual Estela?
-A minha noiva, horas. Aliás, futura noiva. Ela trabalha na confeitaria da Ruth.
-Eu a conheço. Moça muito distinta. Ama mesmo o senhor, não dá espaço para nenhum outro homem.
-Pois é...
David olha para trás e vê de relance a caixa sobre o banco. A sua caixa.
-David? Você está bem?
-Estou sim, claro! Eu preciso ir. Tenho certeza que vocês serão muito felizes. Adeus, James.
-Adeus, David!
David desce do bonde, rapidamente e logo o veículo se afasta.

X.


A bomba explode.

XI.


David olha o veículo em chamas. O único movimento pertinente é o das chamas. Nenhum mais. Ele joga seu chapéu no chão. Dá uma cusparada em direção ao bonde destruído e entre na floricultura. As notícias correm rapidamente. Compra duas dúzias de rosas vermelhas para Estela. Afinal, ela precisará de um ombro para chorar.
E ele vai estar lá.

20040519

Cachinhos Dourados - o poema bagaceiro.

Linda era uma menina muito sapeca
De cachinhos dourados, saltitava pela floresta.
Caminhando por lá, encontrou uma casa
Por onde entrou sem nenhuma ressalva.
Cachinhos dourados entrou e gritou:
"Tem alguém aí, por favor?"
Ninguém respondeu e avistou, a menina legal,
sobre a mesa três belos pratos de mingau.
Sua barriga fazia mais barulho que um trovão
E Linda foi comer, pois não tinha outr'opção.
pelo prato pequeno a menina iniciou
Estava muito quente e sua língua ela queimou.
Em seguida foi tentar o do prato cor-de-rosa
E cuspiu por toda parte, era frio como rocha.
Enfim do prato grande ela se aproximou
Era morno e gostoso, e a garota aprovou.
Comeu tudo direitinho e sentiu-se cansada
E ao quarto ela foi pra dar uma cochilada.
Como nos mingaus, cachinhos testou
cada uma das três camas, e assim se passou:
"Essa cama é muito mole e pequena,
Tinha gostado dela, o que é realmente uma pena"
"Essa outra é muito dura, feia e desajeitada
nessa eu não durmo nem que me encham de
[porrada"

E na última cama, Cachinhos se deitou
Se mexeu, se coçou e foi assim qu'ela cochilou.
Instantes depois chegaram os três ursos num
[jegue
E os apresento a vocês assim como se segue
A mamãe urso foi a primeira a entrar
E já percebeu que alguém esteve no lugar
O ursinho entra correndo num ZÁS
E vai correndo pra mesa de jantar
E por fim o papai urso, gordo e bonachão
Apesar de cara feia, tem um grande coração.
Os três se reúnem em torno da mesa pra comer a
[refeição
Mas como pode-se imaginar, houve uma grande
[decepção
Em coro, eles disseram: "Ei, isso não é legal.
Alguém mexeu no nosso delicioso mingau".
E procuraram por evidências em toda casa
E mamãe urso já sabia que tinha alguma causa.
Mas nada encontraram e resolveram ir dormir com
[fome

E no quarto, lá em cima você sabe quem dorme.
Assim que chegaram ao quarto e notaram a
[invasora
Bradaram e rugiram, ameaçaram-na com uma
[vassoura.
Linda, indefesa, encolheu-se e chorou
E papai urso, mesmo bondoso, não se consolou:
"Sua garota levada, menina sem educação
Entra em nossa casa e apunhala-nos o coração
Come nossa comida e nem diz obrigado
Sem esquecer que você não era um convidado.
E por fim sobe em nosso quarto e apropria-se da
[cama
Como se fosses uma indomável, formosa dama.
Mas saiba que beleza não se põe em mesa
E nem se come a comida alheia e sai-se ilesa.
Da próxima vez, se houver, tenha mais respeito
Não invada a propriedade alheia ou chamamos o
[prefeito
E você e sua família desocupada
Serão daqui finalmente levadas."
Cachinhos dourados saiu correndo aos prantos
E assim nunca mais voltou àquela casa dos
[espantos.
Pois Cachinhos aprendeu a lição
Que nunca se deve comer na casa dos ursos
Se não for armada com um três-oitão.

20040514

Janete

    Na fria e escura São Paulo, num bar às 6h30m da manhã encontramos a nossa heroína.
   Janete, tomando o seu tradicional café preto, puro, com açúcar e uma pitada de canela, sorri perante o jornal, tão fresco como o ar das montanhas Filipinas. Meia hora depois ela já está caminhando. Na pressa, esqueceu o jornal sobre o banco do boteco. Dane-se. Ela tinha mais o que fazer. Naquele belo dia, chuvoso e cinzento, ela encontraria o homem da sua vida.
   Conheceu-o por acaso. Ele tinha mandado uma carta ao jornal reclamando do excesso de ativistas malas que reclamam de tudo. E o jornal publicou! Sensacional. Janete pensou: "Putz, é ele!". Respondeu no endereço indicado e pronto: Eles começaram a se corresponder por cartas.
   Ele morava em São Caetano. Janete achava que era uma cidade de bosta, mas seu conceito melhorou, sabe-se lá o porquê. Era próximo demais pra ser verdade. E por isso mesmo, Janete e Tomas decidiram mutuamente e telepaticamente por não se encontrar antes do tempo. Janete achava tudo o máximo. O mistério. Todo aquele suspense. E o dia havia chegado.
    Eles haviam marcado cedo para aproveitarem bem o dia. Janete tinha lhe comprado meia dúzia de charutos. "Cubanos e dos bons, dona, enrolado nas coxas de cubanas fartas", disse o homem da barraquinha. Ela fez que acreditou, mas no fundo sabia que no mínimo foi uma puta qualquer com varizes e tudo, que enrolou um tabaco vagabundo com papel machê. Mas eram lindos. Afinal, o que mais dar a um homem com um gosto tão refinado e provavelmente com mais discos que poderia contar. "Charutos", ela pensou. E charutos ela comprou.
   Tinham marcado num shopping, às 10h30m. Ia estar mais vazio. E ainda assim seria mais seguro. Mas ainda faltava uma hora e pouco pro encontro. Janete estava ansiosa e constrangida. "Que coisa ridícula, namoradinho por carta". Mas ela sabia que ele não era apenas um namoradinho. E que aquelas cartas representavam o amor de um ao outro, aos cuidados de perfumes borrifados e todas essas breguices. E Janete estava exatamente como disse que estaria: camiseta vermelha com uma estampa da velha Joan, calças jeans e uma flor na cabeça. Um cravo negro. Tomas disse que se aproximaria dela assim que a reconhecesse. Ela gostou que fosse dessa maneira. O suspense ficava maior. E enfim, o shopping abriu. Ela entrou correndo e sentou-se no banco em frente à livraria, como eles haviam combinado. Tudo lindo. Em menos de uma hora, ela e Tomas se conheceriam. Enfim.
   Um homem feio, alto, meio ranzinza se aproxima dela. Ele a faz uma pergunta. "Atrás de você", responde ela, aliviada de que aquele homem burro não era Tomas. Enquanto ainda se diverte, ela nota um homem bonito a observando, ao longe.
   O homem a fita, fixamente. Ela sente um certo constrangimento.
   O homem se dirige rapidamente em direção a ela.
   Seus passos longos e rápidos, quase ritmados, lembravam vagamente um trotar. Coisa engraçada, ela pensou depois.
   E ela continua fazendo-se de interessada no livro. Para não deixar claro sua afobação. E uma voz a diz:
   -Janete?
   Ela olha, sorrindo. Era ele! Ela sabia que era ele!
   -Tomas?
Ele sorri em resposta. A segura pelo braço e diz:
   -Temos que sair daqui.
   -Mas...?
   E ela é puxada por Tomas, que a leva rapidamente para seu carro. "Como ele dirige rápido" ela pensou. E no carro, ele não dizia uma palavra. Estava muito compenetrado.
   O carro pára. Janete não sabe que local é aquele. É longe pra caramba. Muito isolado e Janete sente um frio na espinha. Tinha algo estranho acontecendo.
   Ele desce do carro, e segundos após, abre a porta do passageiro:
   -Que bom te encontrar. Venha.
   E leva Janete para dentro daquela casa. Janete está apavorada. "Que merda tá acontecendo?".
   -Não se preocupe. Não vai te acontecer nada. Só venha comigo, por favor. Rápido.
   -Eu te comprei charutos.
   -Charutos? Eu adoro charutos! Como adivinhou? Acho que você é você mesmo.
   -óqueei... mas espera.
   -que é?
   -Pra onde tá me levando? Por que a pressa?
   Tomas nada responde. Entra por uma porta, por duas e descem, descem muito. "Pros quintos dos infernos" pensa Janete. E continuam a descer.
    Param em um lugar escuro, silencioso e com uma única porta a frente. Entram, obviamente.
   Lá, um brilho intenso acometia toda a sala. E nessa momento Tomas largou de sua mão, deixando Janete desnorteada. Ele a chama e ela guia-se por sua voz.
   Quando seus olhos acostumam-se à claridade, Janete vê uma espécie de caverna. E ao longe, mais uma vez, está Tomas. Ele a chama para perto de si.
   -Janete, olhe para este espelho. E me diga o que você vê.
   -Oras, eu me vejo.
   -Veja além, preste atenção. Olhe cuidadosamente. Eu sei que é você.
   E Janete fita-se por alguns minutos. Em silêncio. Sua imagem às vezes parece dançar.
   Tomas chama-lhe a atenção mais uma vez.
   -Toque-o.
   E assim que Janete aproxima-se do espelho para tocá-lo; ela sente vibrações vindo do espelho, como se fosse um campo mágico. Esse espelho tinha realmente algo incomum e ela não quer tocá-lo pois sabe o que vai acontecer. Mas sua ansiedade e curiosidade a instigam para tal. Aproxima a mão lentamente e toca a superfície com a ponta dos dedos. Então pressiona com a palma da mão.
   -É sólido.
   Ao pronunciar essas palavras, Janete ainda tem tempo de ver atrás de si Tomas com suas cartas em uma das mãos, um olhar apaixonado e uma pistola na outra mão.
   -Eu te amo, Janete.

   BUM!