O telefone tocou.
-Senhorita Marta?
-Pois não?
-Você conhece o senhor Carlos Silveira?
-É meu pai. Quem é?
-Meu nome é Nelma, trabalho aqui no Hospital Central; ligo porque seu pai deu entrada instantes atrás e.. ele não parece estar bem.
-Ele não parece? Que informação é essa?
-Ele não está bem, senhorita. Desculpe.
-O que houve?
-Ele rolou uma escada quando saía da empresa onde ele trabalhara e sofreu um grave traumatismo craniano.
-Ele... ele vai sobreviver?
-Não sabemos dizer ainda, senhorita. A situação está realmente complicada. Você pode vir aqui, vê-lo, se quiser.
-Sim, quero sim. Qual o endereço?
Não conseguindo conter as lágrimas, Marta anotou os dados, desligando o telefone como se estivesse fazendo uma grande força para segurá-lo junto à orelha e enfim pudesse aliviar-se de tamanho esforço. Depois, caiu no chão, chorando, em pânico.
Marta dirigia pelas ruas, já um pouco mais calma, mas ainda tão preocupada. O que seria do pai? Será que ele iria morrer? Ela chegaria ao hospital, e duas horas depois ele morreria, deixando-a sozinha. A mãe já mora longe, sabe-se lá onde, mas ela não a vê há tanto tempo que nem sabe mesmo se sente falta dela. Mas o pai, não. O pai era um homem muito bom, generoso, carinhoso, nunca a deixou passar por nenhuma necessidade. Ela o amava muito. Ou achava que amava, fica difícil definir o que é amor ou não. Tinha medo de misturar gratidão com amor e amá-lo como pai apenas porque estava grata pela vida e por tudo o que ele fez. Não que ela não estivesse, lógico. Ela amava o pai e o pai poderia estar morto. Agora, enquanto ela dirige.
E se acontecesse algo pior. Assim: ele morre por alguns minutos e depois conseguem ressucitá-lo, mas não a tempo suficiente. Ele fica com um problema mental, por falta de oxigenação no cérebro. Isso seria terrível. Ela teria de limpá-lo, todos os dias, talvez mais de uma vez ao dia. Dar banho nele, alimentá-lo, levá-lo para tomar sol, colocá-lo para dormir. Seria como cuidar de uma criança, mas velha e inconveniente. Ela ficaria pra sempre presa junto ao pai. Não pra todo o sempre, já que provavelmente o velho bateria as botas antes dela. Talvez antes mesmo do que ela imagina.
E em relação a dinheiro? Ela tinha o emprego dela que não era grande coisa, mas daria pra ela viver, sozinha. Cuidando do pai seria algo inimaginável com a renda dela, apenas. Ele provavelmente receberia um dinheiro pela aposentadoria por invalidez ou algo assim. Será que ele recebe algo por isso, mesmo? Será que isso a ajudaria de alguma forma? Provavelmente seria um valor mínimo, algo que mal dê para pagar as fraldas dele por um mês, algo assim. A não ser que... é, ele tem um seguro de vida. Puxa, o seguro de vida dele! Outro dia mesmo ele estava falando disso. Que se ele ficasse inválido, ou algo assim, ela receberia algo em torno de 25 mil reais. Já seria uma ajuda. Mas ele também havia dito que se ele morresse, ela receberia um valor estimado em 100 mil reais, livre de impostos! Puxa vida! 100 mil reais, todinhos pra ela! Com esse dinheiro ela poderia comprar uma casa maior. Ou um belo carro. Não, calma aí. Ela não pode sair pensando assim. Não gastaria mais do que 50 mil. A outra metad e ela guardaria em uma poupança ou algo assim. Talvez até uns 60% e só gastaria 40 mil. Com esse dinheiro ela poderia reformar a casa e mudar aquela decoração antiga, horrível. Compraria alguns acessórios, um aparelho stereo todo moderno e se desse, um televisor de plasma. Sim, isso sim, isso sim seria um investimento para o presente e um outro, para o futuro. Seria burrice pegar todo o dinheiro e gastar de uma vez. Ou melhor ainda, não comprar nada pra casa, seu televisor 20 polegadas já da conta do recado e seu radio-gravador tocava as canções que ela precisava. Ela gastaria essa menor parte do dinheiro viajando. Conhecendo alguma outra cultura, possivelmente européia. Quem sabe ela não conheceria um europeu charmoso que se tornasse seu futuro marido? Isso seria seria um grande investimento. É, realmente, é isso o que ela queria. Justamente.
Entre a morte e a invalidez, seria melhor que o pai morresse, mesmo que fosse muito trágico. Afinal, todos morrem um dia, e ela preferia vê-lo morto a retardado. Não tinha dúvidas quanto a isso.
Quando Marta parou em frente ao Hospital, ela já esboçava um leve sorriso entre as lágrimas que vez ou outra ainda corriam, mas ja não tão amargas quanto antes. Caminhou até a portaria e falou com a recepcionista, em tom de velório:
-Eu vim ver meu pai.
-Qual é o nome, por favor?
-É Silveira, Carlos Silveira. Ele está na UTI, me ligaram em casa há cerca de 45 minutos, talvez uma hora. Falei com a Nelma.
-Ah, a Nelma, ela já saiu, mas eu vou tentar localizar o seu pai. Um instante, por favor.
Marta aguardava com os olhos avermelhados mas brilhantes. Muito brilhantes. O brilho, proveniente das lágrimas ou a esperança de enfim ficar rica, captava a luz com tamanha intensidade que parecia iluminar o rosto da recepcionista. O dinheiro que precisaria para o resto da vida.
A recepcionista então olhou para Marta, que já a encarava nervosamente.
-O senhor Carlos Silveira já saiu da UTI e passa bem. Ficará esta noite no hospital, em observação, mas já poderá sair pela manhã.
-Mas nada, ele não teve nenhum problema, não terá nenhuma seqüela?
-Não, não. Nada. Aqui diz que ele terá de ficar em casa uma semana em repouso e depois poderá voltar ao trabalho, normalmente.
-Ah, sim. Obrigada, então.
Marta estava feliz pelo pai. Ela estava feliz, sim. Mas nesse momento sentia-se muito mais desapontada do que feliz. Um sentimento de frustração misturado com essa felicidade inesperada. Pela ligação parecia claro que ele estaria morto. E ela rica. Não, não fazia sentido. Era a sensação de ter levado um golpe baixo numa luta, o juiz não considerar e perder por isso.
Andando com passos apressados e agora mais trêmula do que antes, ela chega ao carro, bate a porta com violência e liga o motor, saindo com o carro.
Como ela faria agora, depois que tudo tinha feito sentido, que era esse o seu destino? Não viajaria pra Europa, não conheceria um europeu, não poderia comprar nem um televisor de 29 polegadas. Estava dura, quebrada e na merda, como antes. Ela bufava. Dirigia de volta pra casa e pensava. Não acreditava em como tinha tido sorte, tanta sorte, minutos atrás e agora estar de volta ao início, ainda pobre e com a cabeça explodindo. Antes morto do que inválido.
O horário de visitas do hospital já tinha acabado antes mesmo dela chegar.
Parou o carro e entrou em casa, rapidamente. Entrou ainda no escuro, sem acender nenhuma luz. E na penumbra teve a idéia que considerou a mais justa e certa. Sentou-se no sofá. Era simples. Mataria o pai. Um crime perfeito. Não seria incriminada. E chorou, encostando a cabeça no sofá. Ria-se como se tudo parecesse muito claro, agora.
Se alguém entrasse na sala agora compreenderia tudo. Um choro de alegria. O pai estava vivo. Alegria e lágrimas. Alegria.
Antes morto do que inválido.