20041229

Crise da meia-idade.

   João da Silva está entediado.
   Recentemente ele se perguntou o que tinha feito de bom para si mesmo e ao mundo. Algo de emocionante e inesquecível. E concluiu que tudo passou sem ele nem se dar ao trabalho de olhar para o lado. E quando o fez, era tudo chato. Ele, sua vida, seu cabelo e até seus sapatos eram chatos. Um tédio.
   João está entediado.
   Seus olhos vazios procuram uma resposta. Uma saída. Ele se distrai com a música que está tocando em seu rádio, naquele momento. "Smoke get in your eyes" toca gentilmente. João da Silva sorri. Aquela música é muito especial para ele. Foi ao som dela que João da Silva tinha feito seu primeiro trabalho. Mas isso aconteceu há uns trinta anos atrás, quando ele era apenas um rapaz de vinte e um anos, cheio de sonhos e planos. Nesse momento ele não se lembra bem os motivos que o levaram a seguir aquela carreira. Mas desde então, ele não podia parar. E não queria fazê-lo. Até aquele momento. Afinal, aquela profissão é certa? Ele pode trocar para algo mais suburbano, algo de trabalho fixo durante o dia, jantar em família à noite. Contudo, quem vai empregá-lo com aquela idade? E o que ele sabe fazer além daquilo? Foi aquilo que ele sempre fez e só aquilo que ele sabe fazer. Profissionalmente, é claro.
   Ele dá uma coçada no olho direito. Boceja. Desliga o rádio no meio de uma música qualquer, só esticando o braço, sem sair de posição, momento algum.
   João, então, se lembra que precisa comprar umas coisas no mercado, depois. Vamos lá, é a comida do cachorro, uns sucrilhos e ovos. Não pode esquecer-se de arroz integral, iogurte e umas frutas. O médico o mandou diminuir o açúcar, cortar o álcool e comer mais frutas, vegetais e um monte de lixo natureba. Só de pensar, ele quer morrer. Mas que se foda, também vai comprar uma caixa de chocolates, duas garrafas de vodca para seu velho amigo, o Bloody Mary, cerveja e obviamente um pacote de jujubas. Desde moleque, esse é seu vício. Digo, sentar em frente ao aparelho de televisão e assistir a um bom filme. Ele, particularmente, gosta muito de comédias românticas e dramas. Dá uma coçada na bunda. Dramas do Leste Europeu, sabe? Ou mesmo o cinema francês, todo cheio de poesia e beleza. Ou aqueles filmes japoneses, cheios de lições de moral, de vida e de história sem ação. Não que ele não gostasse de cinema norte-americano. Karatê Kid é um clássico e os Goonies são realmente bons, apesar do Sloth ser meio molenga. Mas no geral, os filmes americanos são meio tediosos, como por exemplo, aquele filme do.
   João da Silva é interrompido. Por um pombo idiota que entrou pela janela e cagou em seu braço. Filho da puta. Depois João cuida desse bicho nojento.
   Ele acende um cigarro e se lembra que tem de ligar para a mãe. Aquela senhora já tem seus setenta e três anos e continua ativa pra diabo. E ele faz o possível para falar com ela, no mínimo, duas vezes por semana e, agora, já é sexta-feira e ele não ligou pra ela nenhuma vez ainda. Se ela o visse ali, naquele momento, no penúltimo andar de um prédio abandonado, junto à janela, diria que ele precisa se casar pra aprender a viver como um homem. Mas ele já pensou nisso e já quase engrenou num casamento, mas é duro para as mulheres lidarem com sua profissão. Por mais que elas tentem. E isso o faz sentir mais arrependimento. E vergonha por ser que é e fazer o que faz. Seria incrível ter família. Filhos. E provavelmente, ele já teria netos. Mas não. Ele é um velho careca e beberrão, fazendo uma dieta idiota, furando a dieta de vez em quando e vendo filmes a maior parte do tempo. Mas que droga de vida é a vida de João da Silva. Ele boceja outra vez, só em pensar nisso. E na sua vidinha de merda tediosa e chata. Em que ele se engana sempre e tem momentos de felicidade de vez em.
   Ele é interrompido mais uma vez.
   Dessa vez, pelo alarme do seu relógio de pulso. Já é hora dele trabalhar. Pra valer. Ele toma seu instrumento de trabalho em mãos e então se mantém fixo, como o artista tentando captar o momento exato da inspiração, olhando lá pra baixo, pra rua, onde começa a passar um grupo de pessoas. Fanfarra. Polícia. E lá está o carro do presidente. O recém-eleito presidente.
   João da Silva nem faz muito esforço. O carro é aberto, um conversível e tanto, ele diria. Foi olhar e atirar. Nesse caso, três vezes. Acertou-o na cabeça e no peito. O terceiro tiro acertou em cheio o banco do carro. Matou aquele pedaço de couro estofado. Hora do óbito: nove horas e quarenta e um minutos.
   As pessoas ficam em pânico. A polícia em rebuliço. O presidente está morto.
   João da Silva se mantém, olhando a movimentação. Dois de três tiros. Não seria nada mal para qualquer um outro, mas pra ele é como se um padre tivesse errado o Pai-Nosso.
   Eu devo estar ficando velho, pensa consigo.
   João sai da janela e guarda o rifle. Ajeita a gravata e desce calmamente a construção. Lá embaixo, pára perante a multidão que se atropela, fitando-a, orgulhoso. Dá um tapa na testa.
   O suco de tomate! Ele não pode se esquecer de comprar o maldito suco de tomate. Onde já se viu um Bloody Mary sem suco de tomate?
   É, ele está ficando velho mesmo.

20041225

Natal. Netel. Nitil. Notol. Nutul. Nãotãol.

Pode me chamar de tosco, mas você não perde por esperar pela Páscoa!

É isso aí, criançada. Tá acabando o Natal.
Em dois minutos é dia 26 e todas as pessoas vão voltar a ter aquela cara feia de sempre com o mau-humor exalando de seus poros suados, se mal-dizendo por suas existências insignificantes.
Por isso vamos aproveitar esses dois minutos que nos restam.

Afinal, Natal é só uma vez por ano.




Feliz Crimble!